O Vendedor de Glórias Mortas
Nunca mais soube ser quem era. Se despencou em muitos eus. Apostou em casinos e perdeu. A vida ficara cara e o tempo se tornou seu maior credor. Escolhera o jogo, estudara as regras em última autonomia. Naquele momento, já era tarde demais para fazer recusa dos dados viciados que lhe foram concedidos.
‘É sua vez’, disse o negociador gravemente, sem embargo. Por alusão, em pensamento lhe chamava Carontes. Já por bom senso lhe chamava Carlos.
Era a última partida, tinha ciência. Além de não mais dispôr de capital, coisas raras como o tempo não são vendidas em guichê — outra amarga ciência.
Fitou os dados uma vez mais, desditoso. Sentiu soprar sobre si um vento frio de constringir a garganta. Guardava consigo um cado de espírito na carteira, os últimos trocados da alma que lhe restava. Tudo o vento afanou em suas asas.
Levou a mão direita ao bolso traseiro.
Consternado, encarou o negociador.
‘Me roubaram!’, disse ele.
‘Não há furtos neste lugar, meu senhor. Se dá falta de algo, não é porque foi furtado, e, sim, porque o senhor o perdeu.’
‘Eu sei bem do que trouxe comigo, como sei bem do que estou disposto a apostar ou apto a perder!’, retrucou.
‘E de muitas certezas nascem muitos equívocos. De que vale uma plena segurança de si em meio a terras que são desconhecidas? O que quer que tenha perdido, se perdeu assim que entrou neste lugar.’
‘M-Mas como assim??’
‘Inquéritos não irão lhe ajudar. Perguntas tardias não resgatam soluções que já não podem ser empregadas.’
O jogador olhou para a mesa, aturdido.
Em seguida, olhou para os dados mais uma vez.
O negociador sorria um sorriso tímido de antecipação. Mais estreito que a glória, mais insolente que o justo êxito.
‘Eu em algum momento tive alguma chance? Por favor, diga que sim.’
‘A esperança é uma apólice que se compra e se vende, só que de fato não se adquire. Há coisas que pelo processo da compra não se tornam mais nossas. E nesse câmbio muitos perdem mais do que podem pagar.’
Outro vento frio invadiu o lugar.
‘Agora jogue, meu senhor.’