O Zangão e a Flor
Por sobre a relva esverdeada, flutuando com pressa discreta, de asas velozes cujo o som se perde no alarido da natureza atravessada pela vida das pequenas coisas, voa o zangão.
Sua existência é funcional e por isso a retidão de seu caminho é obstinada. Em sua cabeça opera mentalidade de antolhos. Os dias se limitam ao trabalho a ser desempenhado. Surpresas são tidas como signos de mal agouro entre os zangões. O bom zangão cumpre a sua rotina e conta no dia presente a mesma história dos acontecidos do dia de ontem, que será repetida no dia que virá amanhã. Um ditado popular entre as abelhas é que “zangão que se presa não sabe data, hora ou dia da semana, é sempre dia de ofício ou hora de trabalhar”.
Contudo, este zangão em particular guardava um segredo. Um segredo que lhe conferia uma característica diferente, visto que um dia perguntou para outro zangão se, por acaso, tinha segredos e este lhe olhou com uma sobressalente expressão. Parecia absurda a noção de guardar consigo algo que não fosse comum ao resto dos zangões, pois se não é comum, então quer dizer que é atípico. E se é atípico, então quer dizer que é surpreendente. E com essa constatação o outro zangão voou para longe, evitando tomar mais qualquer parte no assunto.
O segredo deste zangão era que internamente ele desejava desempenhar outro papel. A sua função determinava que a sua lealdade fosse exclusiva ao seu dever. E seu dever era procurar a rainha, que por sua vez também procurava o zangão, consumados os dois em um elo tipicamente frígido de troca tépida de desejo impessoal.
O zangão em uma de suas procuras avistou a flor. Essa flor era tão esplendorosa que fazia desabrochar o mundo em suas pétalas. Foi a primeira vez que o zangão parou em seu curso e desviou o seu caminho. Tragado pelo viço da cor e a essência de seu néctar, chegou mais para perto. Observou a sua majestosa corola e consequentemente perguntou para a flor “como posso chamar qualquer outra de rainha se é você quem tem coroa?”.
A partir de então o zangão passou a guardar seu segredo. Carregou consigo a saudade e também a inveja. Inveja esta atribuída às operárias que, apesar de ocuparem posição de mais baixo prestígio na colmeia, tinham como responsabilidade o ofício nos lados externos, beijando as flores mais belas e provando do néctar mais doce.
O zangão seguiu desempenhando seu papel. Se deitando com rainhas, dando continuidade ao fluxo da vida, mas permanecendo triste. Se deitou com muitas, das mais reverenciadas e cobiçadas. Disfarçou seu pensamento distante. Fez votos de não desviar do caminho novamente.
Viveu firme e se manteve conceituado. Porém, desejava ser menor, mais ignorante e mais feliz.
Um belo dia, o zangão se atreveu a se meter em uma conversa entre operárias. Todas elas lhe olharam com estarrecimento, pois aquilo era deveras atípico. Perguntaram se a produção estava satisfatória, se havia algum problema ou se era o caso de algum comunicado transmitido pela rainha. O zangão disse apenas que se cansara das conversas redundantes de seus colegas. Que queria ouvir um pouco das suas subordinadas.
As operárias seguiram com suas pilherias e suas crônicas. Falaram em assunto de discussão a respeito das mais belas colinas que já encontraram, enunciando os seus porquês. Contaram das vezes que viram grandes seres de movimentos caóticos, que andavam errantes e eram bípedes. Lembraram daquelas que acabaram se perdendo em confrontos com estes estranhos seres.
Ouvindo a tudo atentamente, o zangão passou a ser acometido por um tremendo sentimento de impaciência. Por sua posição na hierarquia se sentiu em plena liberdade de interpelar as operárias quanto ao que afligia.
— É de estarrecer que consigam falar a respeito de tantas coisas desimportantes quando gozam desse imenso privilégio de descobrir as flores mais belas, conhecer a textura de suas pétalas e sorver da pureza de seus néctares! Eu não ouvi um comentário sequer a respeito da formosa flor que existe há cerca de dois hectares da colmeia, com sua corola de genuína realeza e essência mais suave que a brisa mais tenra do vento mais favorável. O que vocês têm a dizer quanto a este assunto? Esqueçam dessas ninharias e tratem do que há de sublime, abelhas ignorantes!
As operárias reagiram com assombro a princípio. Mas perceberam a fragilidade e a vulnerabilidade do zangão e então concertaram as suas faces.
— Você deve ter em mente, meu senhor, que cada corpo no mundo carrega a sua filosofia. Nós sabemos que entre os da sua classe há uma série de adágios a seu próprio respeito e conosco não poderia ser diferente — entre todas as operárias, esta parecia ser a mais experiente. Emanava de si a resolubilidade conquistada pela iminência dos últimos dias. Ela concluiu:
— Entre nós existe um ditado muito comum, considerado o mais perspicaz e de maior valor considerado o nosso ofício. Ele diz “cuidado com o amor da flor, pois enquanto que a abelha precisa da flor, a flor só consegue amar o sol e só precisa de água.”