Os dias ao contrário

Flávia Six
Revista Subjetiva
Published in
2 min readApr 7, 2020
Fonte: Divulgação

Eu tentei. Juro que tentei. Coloquei despertador (todos os sete), fui deitar cedo, até tomei um chazinho pra relaxar e pregar o olho. Ouvi o celular, era 8h30. Já virei meio atordoada, meio irritada. Em vez de desligar, aperto na soneca, mais uma, e outra. Resisto, persisto. Eu disse que tentei. Mas não adianta: não consigo me render às manhãs.

A questão é que não tenho porque acordar cedo. Meus horários estão flexíveis, o importante é entregar o trabalho. Ficam me dizendo que preciso de rotina, que preciso trazer normalidade pros dias de isolamento. Por isso a história do despertador e das várias sonecas. Mas e se o que chamam de normalidade não se encaixa em mim? Nem yoga me salvou do mau humor de cair da cama aquele dia. Nunca entendi quem acorda cedo pra não fazer nada. Não que eu não tivesse o que fazer, é que simplesmente não é o meu momento. Minhas manhãs estão reservadas para compromissos de importância vital. Se pode esperar pra quando o relógio ultrapassa a dúzia, assim será. E quanto maior o número, melhor.

É que eu adoro olhar pela janela de madrugada, ouvir o silêncio de uma cidade que dorme. Me escapa um sorriso malandro. O que posso fazer se minha cabeça desperta às 21h30? Se é às 2h que tenho mais jeito com as palavras? E se às 4h a criatividade me dá as caras? Não consigo conter, sou uma mera vítima da ditadura matutina.

Mas agora não. Ah, agora estou livre. Acordo quando me dá na telha, o desjejum fica lá pro meio da tarde. Entortei o dia. Minhas horas de sol se enxugaram, mas ainda chego a tempo de encontrá-lo no sofá. E é quando escurece que sou minha melhor versão. Faço faxina às 3h e jogo paciência às 4h40. As leituras, textos e trabalhos, ficam entrelaçados por aí.

Vou me acostar quando ouço ele chegar, o padeiro aqui do lado. Ele vem com a carrinha, e escuto o portão subindo. É batata. Já abro a boca em bocejo e me toco a escovar os dentes. Passo meus cremes, me espreguiço no pijama e encontro o travesseiro. O relógio dá 5h32. Viro para o lado, me alinho satisfeita e me deixo sumir, por um sonho que vai me levar até não haver para onde ir, sem sirenes ou alertas no celular. E no dia seguinte, isenta de horários ou calendários, vou seguir feliz essa minha rotina desrotinada.

--

--