Os Filhos de Marta

Pedro Karam
Revista Subjetiva
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3 min readSep 26, 2021
Hypescience

Ela, confinada, solitária e desmotivada.
Eles, sua companhia invisível.
Juntos, formavam uma aberração completa, digna dos grandes livros de ficção científica.

(…)

A relação que Marta mantinha com seus personagens nunca foi das mais saudáveis. Eles sempre lhe diziam o que ela tinha que fazer, quando o que deveria acontecer era o contrário! Ah, se ela tivesse se dado conta desde o início… A sua própria criação escapou de seu controle e, desde então, passou a querer controlá-la! Não há nada mais humilhante que receber ordens de quem saiu de dentro da gente. Pode até parecer que estou falando de “filhos”. Mas o buraco é mais embaixo.
Os personagens do livro não finalizado de Marta representavam — na “vida carente de amor” que levava — os filhos que ela nunca teve. Eles supriam algumas de suas necessidades básicas como, por exemplo, a urgência de falar. Como falar sozinho sempre foi um exemplo do quão deprimente o ser humano pode chegar a ser, tê-los ali respondendo às suas indagações não era de todo ruim, por mais que noventa e nove por cento das respostas fossem temperadas com certa rudez. Coisa de filho.
Mas, neste caso, há uma explicação para tamanha grosseria: o grande objetivo dos personagens era fazer com que Marta saísse do apartamento. Ela não colocava os pés para fora há muitos anos, desde que viveu sua última decepção amorosa. E cismava que, se conseguisse terminar “este maldito livro de ficção científica” (suas próprias palavras), ficaria rica, famosa e seria idolatrada nos quatro cantos do mundo por toda a eternidade. Os personagens não estavam nem um pouco preocupados em fazer parte de um livro de sucesso, até porque acreditavam que, caso o livro fosse de fato finalizado, ele jamais faria sucesso mesmo (como poderia? Tanto os protagonistas quanto os antagonistas eram tão rudes…). Então eles bolaram um plano: ocupariam o apartamento de Marta com muita, muita, muita gente, até que ela ficasse impossibilitada de viver ali dentro, sendo obrigada a sair. Mas como seriam capazes de colocar isso em prática se, aparentemente, eram seres invisíveis? A resposta é simples e direta: com herdeiros, especialmente designados à ocupação em massa. Os “Filhos de Marta” fariam sexo entre eles e, assim, teriam filhos. Como eram personagens, nascidos da criatividade — e não de uma química justificada pela ciência — seus “bebês” viriam ao mundo na forma de humanos (porque eles assim os queriam), ou seja, seriam visíveis e ocupariam espaço.
Por fim, para que o plano fosse executado com perfeição, os astuciosos personagens ainda trataram de estabelecer uma valiosíssima regra ao nascimento de seus ocupadores prediletos: todos deveriam vir ao mundo já maiores de idade e robustos.

(…)

O primeiro que entrou foi o Yuri. Depois o Carlos. A Miranda. O Zézé. A Anastácia. A Lia. O Sebastião… E o apartamento de Marta estava prestes a explodir. Ela, antissocial e neurótica, não conseguia se movimentar direito, e sua respiração falhava. Era alérgica a pessoas, pelo jeito. E não fazia a mínima ideia de como aqueles “indesejados propulsores de alergia” foram parar ali.
Durante a ocupação, os personagens calaram-se. Marta pedia ajuda, mas eles fingiam não ouvir. Ela estava prestes a entrar em colapso. Até que o Inácio, ocupador de número setenta e oito, fisgou seu coração.

(…)

Marta e Inácio viveram felizes por muito tempo, do lado de fora do apartamento. Mas aí tiveram um filho e aconteceu desse filho ser um personagem. Marta ficou extremamente decepcionada. E quem não ficaria? Relegou o filho a um segundo plano. Nem nome lhe deu. Fez questão de ignorar a sua existência.

(…)

O filho sem nome de Marta, no fim das contas, era um gênio. E caridoso, ainda por cima. Um tipo muito raro de se encontrar. Ele escreveu o livro de ficção científica que a mãe sempre quis e, num gesto que deixaria até Gandhi menos humilde, a colocou como autora.
Depois disso, Marta perdoou-o por ter nascido personagem. E até lhe deu um nome, muito bonito por sinal: Julinho Verne.

Texto publicado originalmente no livro “Célebres Ninguém” (Ed. Multifoco, 2015), de Karam.

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Pedro Karam
Revista Subjetiva

Escritor, poeta, roteirista de Cinema e TV, cantor e compositor carioca nascido em 1992. Também escrevo críticas de cinema. 4 livros publicados (até agora).