Os filmes de julho, parte 1: Cinema brasileiro e sua diversidade, ótimos documentários

Carlos Massari
Revista Subjetiva
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10 min readAug 18, 2020
A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchoa

O brasileiro ama odiar o cinema de seu país. Mesmo que tenha visto só dois ou três filmes feitos por aqui, repete clichês sem sentido como “só tem pornografia”, “só tem palavrão” e “só mostra favela e pobreza”. Desculpa aí, amigão, mas sexo, palavrão e pobreza são partes indissociáveis do dia a dia (e estão nas cinematografias de todos os cantos do mundo).

Nosso cinema é composto por uma história muito rica e com fases e movimentos de qualidade altíssima. Tivemos e temos cineastas que marcaram seus nomes no mundo todo. Já vencemos prêmios importantíssimos na Europa. Apesar de sofrermos com proibições, com censura, com descaso e com falta de incentivos, produzimos uma filmografia que não deve nada a ninguém.

Uma das minhas resoluções nesse ano de retomada total da cinefilia foi dar mais atenção ao cinema brasileiro. Sempre que surge a oportunidade, opto por um filme feito por aqui. É preciso demonstrar apoio, até mesmo porque temos um presidente tentando a todo custo assassinar a cultura do país e até a entidade responsável pela preservação da nossa memória cinematográfica corre sérios riscos.

Recentemente, descobri que existe um incrível acervo de filmes brasileiros disponíveis no Youtube. Mesmo que a qualidade não seja ideal, é uma ótima oportunidade para conhecer clássicos mais raros.

Esse é o primeiro texto sobre o que assisti em julho de 2020. Foi mais um mês com ritmo mantido e 25 filmes no total. Nas próximas semanas, mais duas levas de obras comentadas devem chegar por aqui!

Se você quiser comentários mais complexos e mais imediatos sobre o que eu assisto, pode me seguir no Letterboxd.

Melhor filme visto no mês: O Mistério de Picasso, de Henri-Georges Clouzot
Pior filme visto no mês: Mommy, I’m Scared, de Reha Erdem

Um dos grandes filmes brasileiros dos últimos anos é Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans. Trata-se de um olhar único para o brasileiro proletário médio e o seu dia a dia, a sua existência oprimida e sem rumo. Um grito sufocado de revolta.

Antes de Arábia, Uchoa dirigiu sozinho A Vizinhança do Tigre, um filme sobre um grupo de jovens que vaga pela periferia de Contagem. E, mais uma vez, é bonito demais ver como o diretor filma essa realidade.

A Vizinhança do Tigre é claramente um antecessor de Arábia. É fácil ver como um filme leva ao outro e como os personagens de um filme se transformam nos personagens de outro. É a continuidade de um conto de periferias e de jovens operários, de pessoas que flertam com o crime e com futuros perdidos, mas que na verdade são marcadas como gado para serem exploradas pelas grandes corporações.

Uchoa faz um grande filme em A Vizinhança do Tigre por achar a poesia desse dia a dia em pequenos momentos, mas por também enxergar toda a raiva que existe contida na falta de presente e de futuro, por enxegar o quanto a situação da juventude excluída brasileira é um barril de pólvora que em algum momento vai explodir.

Existe uma cena em especial nesse filme que envolve dois jovens cantando rap que é uma síntese de tudo o que ele simboliza: Alegria e distração em uma existência sufocada, com todo o ódio ali no canto de quem explora.

Poucos cineastas têm um começo de carreira tão coeso. A sessão dupla A Vizinhança do Tigre e Arábia é recomendadíssima.

Quem também tentou fazer um filme sobre a juventude foi Ally Muritiba, mas dessa vez uma juventude rica e privilegiada. E, ao contrário de Uchoa, ele errou demais.

O filme de Muritiba, Ferrugem, é teoricamente sobre cyber bullying. Uma garota adolescente tem um vídeo sexual vazado e passa a sofrer com todo tipo de maldade de seus colegas de escola. A clássica história que já conhecemos.

Ferrugem, de Ally Muritiba

Mas Muritiba transforma seu filme em só mais uma versão de 13 Reasons Why. O que nós vemos é uma torrente de sofrimento da pobre menina, com quem todas as demais pessoas são cruéis demais. Não há onde ela possa fugir, nem mesmo nos braços da melhor amiga ou do crush.

E então chegam as escolhas dramáticas de péssima qualidade. Pouco antes da metade de Ferrugem, o foco muda completamente da pessoa que sofreu a agressão para a pessoa que agrediu. É o drama da segunda que passamos a acompanhar e, por incrível que pareça, o filme é muito mais empático com ela.

Depois de retratar a todos como monstros em um primeiro momento, Ferrugem tenta humanizar o agressor. E usa até mesmo escolhas de enquadramento que tornam o sofrimento dele mais importante que o dos demais envolvidos no assunto, principalmente em uma cena final que tem uma das piores decisões de uso de câmera que eu já vi.

Infelizmente, Ferrugem é só um 13 Reasons Why com cara de cinema de arte.

Como eu mencionei no início do texto, há muitos filmes brasileiros interessantes no YouTube. Se você quiser explorar a lista do Letterboxd dos 250 mais bem avaliados da história, pode encontrar vários títulos na rede social de vídeos.

Entre eles, está A Deusa Negra, uma co-produção entre Brasil e Nigéria da década de 1970 dirigida por Ola Balogun.

Antes de falar sobre o filme em si, é preciso fazer uma reflexão: Nossa visão de cinema é extremamente americanizada e eurocentrada. Os três maiores polos cinematográficos do mundo em produções lançadas por ano são Estados Unidos, Índia e Nigéria, mas nós muito raramente vemos filmes do segundo país em cartaz por aqui, e jamais vemos do terceiro.

Sendo assim, nós temos pouquíssimo conhecimento de como é a linguagem usada em Nollywood, a indústria nigeriana de cinema. Como polo independente ao exterior, é possível dominar de forma única o que se produz e fugir completamente do que é regra do lado de fora.

Dito isso, é impossível não sofrer com grande estranheza ao assistir A Deusa Negra, filme dirigido por um nigeriano consagrado em seu país. Existe pouco de atuação e muito de encenação. A maior parte dos diálogos parece simplesmente falada, sem qualquer emoção, e a trama é frágil e óbvia.

É um filme muito forte, porém, quando se entrega à cultura negra. Existem cenas belíssimas de rituais e religião, de capoeira e de dança. Enquanto obra sobre a busca pela ancestralidade, que é o tema central, é capaz de explorar com excelência alguns cantos dessas raízes que estão do outro lado do oceano.

Mas não deixa de ser uma obra que causa muito estranheza em sua essência, talvez por estarmos muito desacostumados com o que é o cinema nigeriano. Talvez A Deusa Negra soe mais natural após uma exploração maior da cinematografia do país africano.

Em outra plataforma de vídeos, o Vimeo, está disponível Sudoeste, um filme belíssimo visualmente, mas que tem alguns problemas no campo teórico.

O diretor Eduardo Nunes apresenta Sudoeste como um filme totalmente contemplativo. Desde o aspecto, o radical 3,66:1, deixa claro que não nos quer como espectadores, mas como espiões. Nós somos convidados a observar de longe uma cidade fictícia no litoral brasileiro.

Enquanto mantém essa aura contemplativa, Sudoeste funciona muito bem. É o retrato de um não-lugar, de um Brasil isolado, afastado, com homens que vão e que vem, que coletam sal, que vivem suas existências. O diretor também acerta ao dar um aura folclórica e mística ao universo que cria, com uma bruxa e algum mistério.

As melhores cenas do filme acontecem quando ele mergulha no folclore desse não-lugar tão brasileiro. Mas infelizmente, ele não resiste à necessidade de ser também narrativo, de fazer com que seus personagens percorram uma trajetória. E aí se perde completamente.

Eduardo Nunes cria uma história que parece saída de algum Oscar bait hollywoodiano. Para piorar, os diálogos são todos péssimos. Tudo o que gira em torno da narrativa é terrível e praticamente cancela a beleza que Sudoeste tem enquanto experiência contemplativa.

Não sei se já vi antes um filme tão bonito enquanto experiência contemplativa, ao mesmo tempo tão ruim quando tenta qualquer ponta de narrativa.

Também mais contemplativo é Girimunho, de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina. Ele puxa para um lado mais etnográfico e nos apresenta o dia a dia de algumas personagens no interior de Minas Gerais.

Girimunho, de Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina

O lado contemplativo de Girimunho está nas longas cenas de atividades do cotidiano que apresenta. Pessoas descascando legumes, varrendo o quintal, indo ao batuque. A experiência de observar essas cenas é positiva até porque elas são construídas com calma e se desenvolvem lentamente, quase que nos colocando no ritmo do lugar.

“Tem que fazer as coisas com calma”, diz a personagem principal. E o filme tem calma para apresentar o dia a dia, mas não para dar vida a essas personagens que são muito interessantes. Parece que tem um desespero de capturar poesia em cada fala e em cada ação. Não se contenta simplesmente com o que elas são.

Girimunho parece não entender a força das personagens que tem nas mãos. Desperdiça muito tempo em planos do nada ou em situações que parecem deslocadas. Seria um filme muito melhor se conseguisse que aquela rotina dos legumes descascados fosse o seu centro, não apenas um adorno.

A Vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa, 2016) ****
Ferrugem (Ally Muritiba, 2018) *1/2
A Deusa Negra (Ola Balogun, 1978) **1/2
Sudoeste (Eduardo Nunes, 2011) **1/2
Girimunho (Helvécio Marins Jr. e Clarissa Campolina, 2011) ***

Julho também foi mês de assistir a quatro documentários, gênero que não costuma ser tão apreciado fora da cinefilia. E todos de pelo menos bom nível.

Um é lusófono: O português E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto. Lembra demais a matéria que eu fiz na graduação que era voltada principalmente para documentários auto-centrados.

Em E Agora? Lembra-me, Joaquim Pinto conta a sua história enquanto portador de HIV vivendo junto com seu companheiro. Ele tenta um tratamento alternativo que não funciona e dá terríveis efeitos colaterais. E relata a sua jornada enquanto durante o ano inteiro que tem que conviver com essa situação.

E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto

É um filme sobre um cotidiano sofrido, mas muito bonito e muito sensível. Joaquim Pinto encontra a essência dos pequenos momentos e arranca um sentimento enorme do tempo que passa com sua família, com seus cachorros (Rufus MVP), com seus amigos.

A minha impressão é que cada um dos longos 164 minutos de E Agora? Lembra-me tem algo de relevante para acrescentar. Pinça detalhes do dia a dia e os torna relevantes para a história contada e para aquela existência como um todo. E ainda mostra todo o poder do cinema enquanto ferramenta de registro.

Muito mais experimental, mas ainda auto-centrado é Just Don’t Think I’ll Scream, de Frank Beauvais. Aqui, o cineasta relata a sua experiência durante um período depressivo no qual ele ficou trancado em casa sem fazer nada além de assistir a filmes.

Just Dont’t Think I’ll Scream não tem imagens próprias, apenas colagens de cada um dos 400 filmes a que o diretor assistiu durante três meses ilustrando as suas palavras. Às vezes, funciona. Às vezes, é óbvio demais.

Também é um exercício sobre o valor do cinema como registro e memória, ainda que de forma diferente que E Agora? Lembra-me. E não acerta sempre, mas quando o faz passa um sentido extra da imagem cinematográfica ressignificada, mas ainda cheia de beleza em um novo contexto.

Meu problema principal aqui é que Beauvais é um pouco arrogante demais, destila raiva o tempo todo. Não perdoa o futebol, nem os vizinhos, nem as atividades políticas, nem nada. É um mau humor que o prejudica enquanto protagonista.

Mas não deixa de ser um exercício competente e interessante dentro do que propõe.

O experimentalismo também aparece em O Mistério de Picasso, de Henri-Georges Clouzot. A princípio simples, com apenas imagens de telas sendo pintadas pelo grande Pablo Picasso, ele aos poucos se revela também uma grande obra de arte cinematográfica.

No cinema, o espaço e o tempo são dois eixos basilares da narrativa. Ao acompanharmos uma ação que é simplesmente uma pintura acontecendo, sem que exista o desenvolvimento de uma história contada ou de algo que ocorre em um lugar ou em um período delimitado, nós temos esses alicerces derrubados. O que sobra em O Mistério de Picasso é só processo criativo.

O Mistério de Picasso, de Henri-Georges Clouzot

Outra questão interessante aqui é que todos os quadros pintados por Picasso durante as filmagens foram destruídos. Assim, o filme serve como museu e como única forma de apreciar essas obras de um dos grandes artistas da história. Mais uma vez, o cinema é ressignificado.

Aos poucos, Clouzot começa a inserir novos elementos e novos desafios para Picasso. Se o pintor nos surpreende ao tempo todo com a imprevisibilidade de suas criações, o cineasta faz o mesmo, nos levando a lugares inesperados e explorando a linguagem o quanto pode. Os elementos como o espaço e o tempo entram e saem de cena o tempo todo.

É fascinante ver a quantidade de obras de arte que Picasso pinta aqui, mas elas estão dentro de uma outra obra de arte, essa criada por Clouzot. É como um filme em formato de boneca russa.

Muito mais experimental é We Can’t Go Home Again, do grande Nicholas Ray. A tela se divide em quatro, múltiplos formatos são explorados, a imagem é distorcida, a narrativa não se liga. É uma experiência deveras radical.

Nicholas Ray fez esse filme junto com seus estudantes quando dava aula em uma faculdade, já próximo de sua morte, junto com eles. Todos interpretam a si mesmos, inclusive o cineasta. E ele diz algumas pérolas maravilhosas aqui, como eu fiz dez malditos westerns, mas não sei nem dar um nó.

Porém, essa é uma obra muito mais fechada a um nicho bastante restrito de quem gosta de experimentalismo radical.

E Agora? Lembra-me (Joaquim Pinto, 2013) ****1/2
Just Don’t Think I’ll Scream (Frank Beauvais, 2019) ***
O Mistério de Picasso (Henri-Georges Clouzot, 1956) *****
We Can’t Go Home Again (Nicholas Ray, 1973) ***1/2

No próximo texto, reflexões sobre religião e moral no cinema e na vida a partir de alguns clássicos poloneses e italianos. Até lá!

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.