Os filmes de junho, parte 1: Destacamento Blood, A Vastidão da Noite e mais

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
10 min readJul 14, 2020
Destacamento Blood, de Spike Lee

2019 foi fantástico para o cinema. Na minha opinião, os três melhores filmes da década (O Irlandês, Parasita e Retrato de uma Jovem em Chamas) foram lançados durante seus doze meses. É preciso fazer uma significativa volta no tempo para encontrar algum ano que nos ofereceu qualidade similar.

É claro que nós estávamos com as expectativas altas para 2020 — afinal, e se o vento fosse duradouro? Uma onda de boas ideias e de cineastas de primeira linha fazendo trabalhos fantásticos encobrindo o mundo com duração de um período histórico de tempo, por que não?

Mas nunca houve um tombo tão feio: 2020 é ano de coronavírus, e não é nem que não estamos tendo grandes filmes, mas que quase não estamos tendo filmes, simplesmente. O Festival de Cannes foi cancelado, não há cinemas abertos (ou pelo menos não deveria haver), e nós cinéfilos estamos aproveitando para mergulhar em obras de cineastas antigos ou pegando obras históricas que perdemos — não que exista algo de errado ou ruim nisso.

O que existe de novidade na sétima arte em 2020 é o que tem o selo das grandes plataformas de streaming, como Netflix e Amazon Prime, e já estava pronto antes da pandemia. Não sobra muita coisa, mas junho ao menos nos surpreendeu com o raro lançamento de uma nova obra de um grande diretor com Destacamento Blood, de Spike Lee.

Esse é o primeiro texto sobre os filmes vistos em junho de 2020, que foram 25 — número um pouco menor do que maio. Nele, vou focar em filmes mais recentes, ou que foram lançados por plataformas de streaming, ou que tenham no máximo duas décadas de vida.

Você pode ler textos mais completos sobre cada um desses filmes ou acompanhar de perto o que eu assisto me seguindo no Letterboxd.

Melhor filme visto no mês (contando revisões): Possessão, de Andrzej Zulawski
Melhor filme visto pela primeira vez no mês: Jacquot de Nantes, de Agnès Varda.
Pior filme visto no mês: Take me Somewhere Nice, de Ena Sendijarevic

Spike Lee vinha em baixa nos últimos anos. Sem entregar grandes filmes, conseguiu mudar novamente o rumo de sua carreira com Infiltrado na Klan, que é divertido, bem filmado e tem enorme relevância histórica. O sucesso feito em 2018 por essa obra abriu as portas para que Destacamento Blood fosse financiado pela Netflix e aguardado ansiosamente pelos fãs de cinema.

O diretor decidiu seguir aqui os mesmos caminhos que fizeram o sucesso de Infiltrado na Klan: pegar um tema relevante na história norte-americana e com conexões profundas com as questões raciais, embalá-lo em uma mistura de drama, bom humor e crítica social e usar todas as suas marcas registradas estéticas e narrativas.

Podemos dizer que essa repetição funciona e não funciona ao mesmo tempo. É inegável que Destacamento Blood é um filme de grande relevância histórica, e é chocante como o tema dos negros no exército norte-americano é tão pouco discutido. Com duas horas e meia de duração, há espaço mais do que suficiente para falar sobre o que precisa ser falado, criticar o que precisa ser criticado e apontar os dedos que precisam ser apontados.

Mas é um filme com sobras demais, com personagens e sub-tramas demais, com caminhos desnecessários que só contribuem para que essas duas horas e meia sejam mais arrastadas do que deveriam. O grande problema de Destacamento Blood é o excesso — a francesa que desarma minas e todos os seus amigos poderiam ser limados sem qualquer dano narrativo, por exemplo.

Mesmo assim, o filme contém um espetáculo que é a atuação de Delroy Lindo, uma das mais incríveis dos últimos anos. Com um monólogo que é a melhor cena de Destacamento Blood (aliás, uma característica do diretor), o veterano ator se coloca desde já como um dos favoritos para as premiações no começo de 2021.

Destacamento Blood é um filme relevante e interessante, mas que poderia ter mais impacto se não perdesse o foco e não tivesse tanta coisa sobrando.

Se o excesso marca Destacamento Blood, em A Vastidão da Noite, lançado pela Amazon Prime, ele absolutamente não é problema. O filme custou um minúsculo orçamento de 700 mil dólares, quase todo pago do próprio bolso do diretor Andrew Patterson, e conseguiu um enorme e inesperado sucesso na plataforma de streaming.

A Vastidão da Noite, de Andrew Patterson

A Vastidão da Noite, para funcionar com um orçamento tão pequeno, esbanja criatividade. Ele se veste de programa de televisão antigo e carrega todas as características do grande mistério norte-americano: a cidade minúscula do interior, os adolescentes entediados, o ritmo lento da vida, a noite que muda absolutamente tudo.

A solução encontrada por Patterson foi fazer longos planos-sequência que apresentam e desenvolvem a trama. Eles não são um primor estético, mas pelo orçamento são de tirar o chapéu.

O ritmo é o grande problema do filme, que começa de maneira aceleradíssima e vai perdendo esse fôlego. Falta uma distribuição melhor da ação, dos diálogos, uma calma para desenvolver a história a ser contada. E não só calma, como também um mergulho mais firme nesse universo, que parece ter tanto a ser mostrado mas fica só um cantinho na tela.

Impressiona por ter chegado onde chegou, sem dúvidas. Imagino que a Amazon Prime poderia expandir esse universo para uma série — seria um bom rival para Stranger Things.

Destacamento Blood (Spike Lee, 2020) ***1/2
A Vastidão da Noite (Andrew Patterson, 2019) ***

Agora vamos voltar um pouco mais no tempo, mas nem tanto: Dois filmes que fizeram bastante sucesso no Festival de Cannes recentemente foram Winter Sleep, do diretor turco Nuri Bilge Ceylan, e Loveless, do russo Andrey Zvyagintsev. O primeiro, inclusive, ganhou a Palma de Ouro. E estou aqui para contestar o sucesso de ambos!

Do turco Nuri Bilge Ceylan, gosto bastante de filmes anteriores. Em Climates já havia demonstrado uma enorme capacidade estética, que se combinou com um amadurecimento narrativo no ótimo Era uma Vez na Anatólia. A Palma de Ouro com seu filme seguinte, Winter Sleep, pareceu natural. As três horas e vinte de filme, porém, sempre me afastaram de sentar e vê-lo.

Fiquei bastante decepcionado com Winter Sleep porque me parece um filme de alguém que acreditou que é um diretor de CINEMA DE ARTE. E assumiu os estereótipos, os clichês, elevou tudo ao máximo e fez o pastiche do pastiche.

Winter Sleep, de Nuri Bilge Ceylan

Só descobrimos mais ou menos sobre o que é o filme com uma hora de projeção. São muitos diálogos que não levam a lugar nenhum, são personagens que falam sobre as suas vidas e se xingam e se criticam, presos em um mundo que não parece ter muita saída. Esse mundo, é claro, é a ilustração do tal sono de inverno, com a neve que preenche as paisagens da Anatólia.

Por mais que Ceylan tenha alcançado uma plena excelência visual aqui, e que cada externa seja quase perfeita, todo o conteúdo parece uma sátira de filme de arte do primeiro ano de uma faculdade. Três horas e vinte de pessoas falando. Nada, nada mesmo acontece. Só discussões filosóficas que não servem, na verdade, para muita coisa.

Muita gente ainda cai nesse pastiche do cinema de arte, tanto é que o filme levou a Palma de Ouro em Cannes. Mas Ceylan deveria se concentrar mais no que faz de melhor, que é compor imagens sensacionais, em vez de se limitar tanto a um estilo que não explora suas características principais.

Com Zvyagintsev, porém, eu já tinha muitos problemas. Seu filme anterior, Leviatã, também elogiado em Cannes, era cínico e amargo, destilando veneno em todos os personagens. Uma coisa maniqueísta e unilateral, sem lados positivos, sem balanceamento.

E quase a mesma coisa acontece em Loveless. Zvyagintsev não tem a menor vergonha de manipular o público para odiar a todos os seus personagens: É o casal que discute sobre colocar o filho no orfanato para a câmera revelar a criança chorando atrás da porta, é a ênfase em tanto pai, como mãe transando com seus amantes enquanto a criança desaparece. Não existe nenhuma sutileza, o diretor aponta o dedo com clareza para seu filme e grita VEJA QUE PESSOAS HORRÍVEIS.

Loveless também se passa no frio e enche as suas paisagens de neve: Europeus claramente acham que essa ligação entre o inverno e a tristeza ou ao ódio é original e que ninguém nunca pensou nisso antes. E continua passando a sua mensagem de que todos os personagens são horríveis. Esses personagens, de maneira nada sutil, são metáforas para a própria Rússia.

É um mar de amargor e de maniqueísmo. Um cinema feito para que você se sinta mal e perca as esperanças na humanidade. Mas nós sabemos que as coisas não são assim e que dramaturgia boa tem nuances, não sofrimento tão escancarado, tão brutal. Zvyagintsev pode ter seus adeptos, mas é só um manipulador que não sabe como dosar a sua misantropia na tela.

Winter Sleep (Nuri Bilge Ceylan, 2014) **1/2
Loveless (Andrey Zvyagintsev, 2017) **

Os filmes chamados coming of age estão muito na moda, e da Holanda vem Take me Somewhere Nice, de Ena Sendijarevic. A história é sobre uma garota adolescente que viaja para a Bósnia, onde seu pai mora, para visitá-lo no hospital.

Além de esteticamente problemático, com muitos planos mal-construídos (principalmente quando envolve pessoas — a diretora tem uma dificuldade absurda em enquadrá-las corretamente), o filme não faz ideia do que quer ser. Muitas vezes faz parte do gênero adolescente entediado, que se mistura frequentemente com o europeu entediado em cenas longas nas quais nada acontece, mas em outras é uma comédia absolutamente sem graça.

É uma trama na qual os personagens tomam sempre a pior decisão possível, o que leva a situações absurdas nas quais outras decisões péssimas serão tomadas. Tudo isso com a máscara da sensibilidade e do crescimento pessoal. Praticamente nada funciona, principalmente porque os personagens têm a profundidade de um pires.

Ah, e o final é absolutamente terrível.

Outro filme europeu ruim que segue um gênero na moda — no caso, o thriller de vingança — é Tarde para la Ira, do espanhol Raúl Arévalo. Esse é um filme que faz escolhas muito ruins, em vez de deixar que seus personagens o façam.

Tarde para la Ira, de Raúl Arévalo

É um thriller de vingança, ou seja, a história de um homem que anos depois persegue os assassinos de sua esposa para matá-los. Mas de forma inexplicável, diria até que covarde, mostra esse crime inicial de maneira extremamente gráfica, mas os demais acontecem fora da tela.

Existem alguns caminhos estéticos interessantes, como a sujeira que permeia o filme, seja em personagens, em locações ou até na própria fotografia. Mas o que o modo de filmar traz é crueldade e sadismo, é o fato de que a morte de alguém querido pode ser explorado, gerando raiva no público, mas as de “vilões” não. Mais uma vez, manipulação maniqueísta pouco inspirada.

Também existem problemas com desenvolvimento de personagens — a trama desenvolve a vingança, não as pessoas. O que sobra é mais uma vez muito raso.

Ganha de Take me Somewhere Nice por ser melhor visualmente, mas também não merece muita atenção.

Uma aparição mais interessante do gênero adolescente entediado é o uruguaio 25 Watts, da dupla formado pelo falecido Juan Pablo Rebella e por Pablo Stoll. Esse é, de fato, um filme que praticamente nada acontece.

A mensagem aqui é muito mais interessante: Vemos uma Montevidéu silenciosa, sempre quieta, sempre parada. Não há ninguém nas ruas. O clima é de desesperança. Trata-se de um filme de 2001, portanto, pré-Mujica. A cidade deserta e os personagens desertos refletem um Uruguai sem rumo.

Os personagens aqui também são bastante detestáveis, passam uma hora e meia fazendo bobagens sem importância e vivendo de maneira inconsequente. O filme, porém, tem uma consciência maior de si mesmo, sabe o que quer dizer e onde quer chegar.

Existe uma contradição teórica, porém: Se esse vazio absoluto dos personagens faz sentido para retratar a desesperança uruguaia da época, ele faz com que o filme vá se tornando desinteressante durante a sua projeção, já que não existe conexão nenhuma entre público e trama, nem entre público e personagens.

Take me Somewhere Nice (Ena Sendijarevic, 2019) *
Tarde para la Ira (Raúl Arévalo, 2016) **
25 Watts (Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, 2001) ***

Depois de tantas críticas a filmes ruins e medianos, vamos melhorar o humor desse texto falando bem de um belo e sensível documentário francês: Ser e Ter, de Nicholas Philibert.

Lançado em 2002, esse documentário acompanha o dia a dia do único professor de uma cidadezinha francesa de 200 habitantes. Como é de se imaginar, só há uma sala da aula, na qual os dois ou três alunos de cada idade se misturam.

Ser e Ter, de Nicholas Philibert

Impressiona a sensibilidade do filme para contar essa história. Ele o faz sempre com ternura e dedicação, refletindo exatamente como o professor trata os alunos. É uma vida com ritmo próprio e diferente do que conhecemos, é um crescimento que passa por modos de convivência e criações de laços que não se parecem com as nossas experiências pessoais.

Eu gostaria de conhecer opiniões mais elaboradas de pessoas que trabalham com pedagogia, ramo do qual eu não entendo nada, sobre o filme. Mas como experiência cinematográfica, Ser e Ter é bonito e agradável.

Ser e Ter (Nicholas Philibert, 2002) ***1/2

Em breve voltarei com textos sobre filmes bem melhores, focando principalmente em clássicos poloneses e franceses! Tenha calma, pois esse mau humor inicial vai passar!

--

--

Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.