Os filmes de maio, parte 2: Deixem o cinema de terror em paz

Carlos Massari
Revista Subjetiva
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11 min readJun 19, 2020
A Tortura do Medo, de Michael Powell

Foi com o terror que nasceu minha cinefilia. A primeira memória que tenho de assistir a um filme é de quando tinha quatro ou cinco anos de idade e passava na Bandeirantes o clássico Palhaços Assassinos do Espaço. Em seguida, passei a me empolgar muito quando descobria que a televisão ia exibir algum exemplar das séries Sexta-Feira 13 ou Halloween. Minha mãe tentava tapar meus olhos, eu dava risada. Ela desistiu.

O surgimento do Cine Trash, também da Bandeirantes, foi um deleite. Tardes e tardes vendo sangue escorrer pela tela. Na segunda série, estava sentado no pátio durante o recreio, sozinho, quando chegou uma senhora para conversar comigo. Contei sobre toda a minha predileção e os meus gostos nada ortodoxos para a idade e, dias depois, minha mãe foi chamada para conversar. A mulher desconhecida era a psicóloga da escola.

Mais tarde, na adolescência, quando expandi os horizontes para outros gêneros e quebrei qualquer barreira possível, lembro de levar na locadora do bairro uma lista cheia de Fellinis e Bergmans para que o atendente pesquisasse no computador se a loja possuía algum daqueles títulos e, com a memória que tinha do eu de anos antes, ele exclamou: aposto que se torcer esse papel sai um monte de sangue!

Fica claro com essa introdução que eu amo terror. É um dos meus gêneros preferidos, e é o único que eu assisto mesmo sabendo que o filme vai ser ruim. Infelizmente, ele ainda é visto e tratado como o patinho feio do cinema e, vez ou outra, aparece alguém querendo fazer com que ele se pareça com o que é chamado de “arte” em festivais e afins.

É comum que cineastas queiram fazer terror que não se pareça com terror, e recentemente surgiu o termo horroroso “pós-terror”, que diz respeito ao que Hollywood tem feito em filmes com uma suposta camada psicológica profunda e estética trabalhada, como Hereditário, Midsommar, Um Lugar Silencioso, A Bruxa e afins. Tal denominação basicamente renega tudo o que já foi feito no gênero, como se não houvesse antes obras com camada psicológica profunda e estética trabalhada.

Em maio, vi uma quantidade considerável de filmes de terror. Esse texto é dedicado principalmente a eles.

Melhor filme visto no mês: A Tortura do Medo, de Michael Powell.
Pior filme visto no mês: Grave, de Julia Ducournau.

Tanto o melhor, como o pior filme vistos no mês são do gênero terror. E vêm de momentos muito diferentes da história, com intenções e percepções absurdamente diversas.

A Tortura do Medo, também conhecido por seu título original, Peeping Tom, é o pai do gênero slasher. Teve uma recepção terrível em seu lançamento em 1960, enterrando a carreira do diretor Michael Powell. Os britânicos ficaram chocados com a violência, a descrição do protagonista psicopata, até mesmo a presença de nudez. Dois meses depois, Alfred Hitchcock lançaria Psicose, e a recepção cruel recebida pelo filme de Powell fez com que o mestre do suspense decidisse cancelar todas as cabines de imprensa para evitar que o que seria um de seus maiores clássicos tivesse o mesmo destino.

É possível reconhecer em A Tortura do Medo muitas características e tropes do slasher. Mas ele é muito mais do que isso. São várias as camadas, e podemos nos debruçar para analisar cada uma delas. Pode ser sobre voyeurismo. Pode ser sobre psicanálise. E, principalmente, pode ser sobre o próprio cinema.

Um homem atormentado pelo passado, obcecado pela sua câmera, anda com ela para todas as partes. Ele mata garotas sempre filmando a morte porque a sua ideia é capturar a imagem do medo absoluto, ou seja, a do momento que a pessoa sabe que não tem mais escapatória. Tudo isso é tratado com uma direção insinuante, que nos induz a todos os tipos de pensamentos.

Afinal, por que nós assistimos a filmes? Gastamos duas horas das nossas vidas vendo as vidas de pessoas que nem existem? E quando nós construímos histórias e buscamos filmá-las? É possível encontrar tudo isso nas camadas mais profundas do terror violento de A Tortura do Medo.

Grave, por sua vez, segue um outro caminho. O filme belga da diretora Julie Ducournau abandona totalmente qualquer lógica, fazendo com que os personagens tomem sempre a pior decisão possível. Se qualquer um deles fizesse o que qualquer ser humano faria a qualquer momento da trama, não haveria mais sentido na existência de tudo o que vem a seguir.

Grave, de Julia Ducournau

Mas esse nem é o maior problema de Grave. Ele sofre do terrível mal do “pós-terror” de querer renegar as origens do terror, de ter cara de arte, de filme de festival. E por isso se enche de cores frias, de imagens estáticas de beira de estrada, de uma estética típica de europeu entediado. Mas é terror, não é tédio. As coisas simplesmente não combinam.

Essa ideia de que o terror não tem trabalho estético de qualidade é negada principalmente pelos diretores italianos que tornaram a bota um dos países mais proeminentes no gênero. Eles criaram obras que são absolutos deleites visuais com baixo orçamento e que montaram uma codificação do que é o terror bonito, pujante, que funciona: aquele com um sangue que vibra, com cores fortes, com tripas, com força em cada parte de sua iconografia.

Também assisti em maio a Buio Omega, de Joe D’Amato, filme que baixei para a minha iniciação científica em 2011 (que foi sobre terror italiano) e abandonei no HD por quase uma década. E ele funciona bem demais por ir a esses limites do gênero, por ter necrofilia, lactação erótica, canibalismo, necrofilia, todo tipo de parafilia. E por jorrar sangue vermelho vibrante.

É um filme com um enorme talento visual para contar uma história longe de ser brilhante, mas que não precisa ser brilhante.

Em Grave, temos o contrário de tudo isso. Ducournau renega o terror o tempo todo com a sua estética, e ainda conta a sua história de canibalismo para ser uma metáfora sobre o despertar sexual nos primeiros anos de faculdade. Até essa é uma péssima metáfora, incapaz de ter qualquer tipo de sentido.

Nada se salva na obra da diretora belga, que erra o tom em todos os aspectos possíveis.

Outro filme que tem personagens tomando decisões terríveis só para que a trama possa avançar e estética de europeu entediado é A Cabana, da dupla Veronika Franz e Severin Fiala. Aqui, pelo menos existe um pouco de qualidade nas atuações e na tentativa de gerar medo através de iconografia religiosa, coisa que costuma ser funcional. Mas abandona tudo isso.

A Cabana também é terrivelmente filmado, com excesso de teto em todos os momentos. Segundo os diretores foi uma opção para tentar relembrar obras de casa mal-assombrada, só que simplesmente não funciona.

Imagino que ele poderia ter adentrado mais nas questões de trauma que levanta e explorado mais a iconografia que traz, até uma proximidade com O Iluminado. Mas seguiu apenas caminhos errados e acabou sendo só mais um terror fraco que não quer ser terror.

A Cabana, de Veronika Franz e Severin Fiala

Para finalizar esse setor, tenho que falar sobre o quinto filme de terror visto em maio, Surfistas Nazistas Devem Morrer, da Troma. Se vocês se lembram, já falei em um texto anterior sobre essa produtora de filmes B que surgiu na década de 1980 nos Estados Unidos com a intenção de fazer obras escatológicas, violentas, cheias de sangue e de tosquice. Quando seguiu essa diretriz à risca chegou a bons resultados, como em O Vingador Tóxico.

Surfistas Nazistas Devem Morrer, porém, não tem quase nada disso. São duas ou três cenas de violência extrema, mas sem escatologia, sem o sangue que precisava, sem o absurdo que deveria alcançar. Na falta de tudo isso, o destaque fica para o péssimo roteiro, para a completa falta de coesão, para os adolescentes chatos e desinteressantes que são os protagonistas. É uma completa perda de tempo e uma entrada vergonhosa na filmografia da Troma.

A Tortura do Medo (Michael Powell, 1960) ****1/2
Grave (Julie Ducournau, 2016) 1/2
Buio Omega (Joe D’Amato, 1979) ***1/2
A Cabana (Veronika Franz e Severin Fiala, 2019) **
Surfistas Nazistas Devem Morrer (Peter George, 1987) *

Só para complementar esse setor, peço para que parem de fazer o terror não parecer terror. Não tenham vergonha do gênero, que pode ser ótimo com as suas características, com os seus lugares comuns, com a sua estrutura: Mesmo toda a base criada por Powell em A Tortura do Medo, que hoje chamamos de slasher, ainda funciona muito bem se trabalhada com carinho.

Continua acontecendo no MUBI a retrospectiva do diretor francês Louis Malle. Já comentei em textos dos meses anteriores sobre alguns de seus filmes (Ascensor para o Cadafalso, Trinta Anos Esta Noite), e agora faço o link com os parágrafos de cima porque Lua Negra, de 1975, está listado em alguns lugares como “terror”.

Na verdade, é uma experiência surrealista que não pode ser encaixada em qualquer tipo de caixinha de gênero. Existe até mesmo uma pessoa com o sobrenome Buñuel no time de roteiristas, que mais tarde descobri ser nora do grande Luís.

Lua Negra começa de forma impressionante, ambientando um mundo que aparenta estar vivendo uma guerra entre homens e mulheres. Uma personagem vaga por terras devastadas e escapa do conflito para chegar em uma velha mansão, onde passará todo o resto da projeção.

É um filme que gera muito potencial em seu início, mas depois passa a cair vertiginosamente. O ambiente fechado, dentro da casa, não é nem de longe tão interessante como o de fora, da guerra civil. Existe também um silêncio constante que eventualmente é quebrado por diálogos. Devido à estrutura surrealista, porém, esses diálogos beiram o constrangedor.

Lua Negra, de Louis Malle

Louis Malle filmou Lua Negra em sua própria casa. Trata-se de um filme pessoal, próprio, com significados que nem sequer vale a pena tentar entender: só o cineasta devia saber o que cada coisa representava, se é que de fato isso existia.

Mais antigo, de 1958, é Os Amantes, filme que causou escândalo pelas suas cenas de sexo quando foi lançado. É um quadrilátero amoroso burguês, com personagens não muito desenvolvidos e, acima de tudo, chatos.

Os pontos positivos de Os Amantes são justamente as suas cenas de amor e de sexo, momentos nos quais Malle consegue elevar o que o cinema fazia em tais situações até o momento e quase colocar a tela em chamas. Jeanne Moreau, sempre tão presente no cinema francês da época, se destaca bastante também.

Tanto Lua Negra como Os Amantes são bons pontos de curiosidade na história do cinema, mas não chegam a ser grandes filmes.

Lua Negra (Louis Malle, 1975) ***
Os Amantes (Louis Malle, 1958) ***

Outro gênero que está entre os meus preferidos é o noir. Por ele, eu me apaixonei mais tarde, já perto do final da graduação. Isso fez com que me arrastasse até as suas profundezas para fazer meu trabalho de conclusão de curso, o curta-metragem Midnight Walker, e depois começasse um mestrado sobre ele que seria rapidamente abandonado devido à minha aversão ao mundo acadêmico.

Eu mencionei o quanto não me agrada a releitura com cara de arte do cinema de terror, mas veja bem, eu não sou tão chato! Isso porque há também uma releitura do noir sendo feita, essa com uma delimitação geográfica na China, e eu tendo sim a achá-la muito boa.

Costumo chamar esse gênero, tão comum no cinema chinês atual (vi três filmes do país em 2020, todos pertencem a ele), de neo-noir de neon. Ele usa as principais bases do noir, como um protagonista solitário e atormentado envolvido em um mundo de crime, presenças fortes femininas normalmente ligadas à perdição e um submundo cheio de situações perigosas e sem escape, para mostrar uma China que não existe nos mapas ou nos noticiários, está escondida no meio das enormes cidades labirínticas com milhares de bares com letreiros neon habitados por protagonistas solitários e atormentados envolvidos em um mundo de crime.

O Lago do Ganso Selvagem, de Diao Yi’nam

O filme visto em maio pertencente ao neo-noir de neon foi O Lago do Ganso Selvagem, de Diao Yi’nan, que competiu em Cannes 2019. Quando eu falei acima em “China que não existe nos mapas”, não estava exagerando: a história é sobre um homem que, procurado pela polícia, se esconde em uma zona extremamente perigosa e sem escape em volta do lago que dá o título à obra.

Diao Yi’nan é muito competente em criar a atmosfera do filme, e esse é um dos fatores que mais me atraem no noir e na sua releitura chinesa. É bonito demais ver como os cineastas dessa versão moderna do gênero filmam as cidades e dão vida a elas entre becos, bares, labirintos e vielas. A noite brilha entre as fachadas de neon, mas o mundo é ao mesmo tempo triste e perigoso.

Esse é um filme que me deslumbra em sua atmosfera, me faz querer filmar coisas parecidas, mas que é muito fraco e confuso em sua trama. O interesse, portanto, é só visual. E ele ainda perde um pouco por ter uma das cenas de estupro mais gratuitas que eu me lembro de já ter visto.

Uma versão do noir clássico quase que similar a O Lago do Ganso Selvagem é Dois Homens em Manhattan, filme de 1959 de Jean-Pierre Melville. Também me impressiona na ambientação, no jeito de filmar a noite, os bares e seus habitantes tristes, que faz tudo isso parecer tão bonito e charmoso. Só que ao mesmo tempo tem uma trama muito problemática, principalmente pelo quanto seus personagens não são interessantes.

Além disso, também há alguns problemas mais sérios em Dois Homens em Manhattan: Ele descamba para um moralismo gratuito na sua parte final que prejudica ainda mais a trama, e destila misoginia por quase toda a projeção. Assim, ainda mais do que em O Lago do Ganso Selvagem, o que sobra é só o primor visual.

Também de Melville é O Silêncio do Mar, esse um drama sobre a ocupação francesa durante a Segunda Guerra Mundial. E sempre que eu vejo filmes sobre esse período, fico assustado com o quanto estranha foi a reação da França a tudo isso.

O Silêncio do Mar foi um livro que virou símbolo da resistência durante a ocupação. Porém, a resistência aqui vem em forma de silêncio, não de combate.

Mais uma vez, Melville demonstra um talento visual incrível. É um filme de um só cenário na maior parte do tempo, e conseguir o que o cineasta consegue em um espaço tão pequeno é para poucos. O destaque é para a sensação de opressão e de claustrofobia criada, principalmente quando um dos personagens, um oficial alemão, está enquadrado.

Eu vejo o filme cair muito na sua parte final, quando deixa o único cenário e busca novos ares. Tudo o que ele constrói sobre opressão cai por terra, e infelizmente se torna bastante normal.

O Lago do Ganso Selvagem (Diao Yi’nam, 2019) ***
Dois Homens em Manhattan (Jean-Pierre Melville, 1959) **1/2
O Silêncio do Mar (Jean-Pierre Melville, 1949) ***1/2

Volto em breve com o terceiro e último texto sobre os filmes vistos em maio. Vai ter de tudo nele: de obras de grandes diretores a comédia romântica da Netflix! Se você quer acompanhar mais de perto o que eu assisto e minhas impressões sobre, pode me seguir no Letterboxd.

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.