Os filmes de março, parte 1: Fellini, Schlesinger, o que restou do circuito
Quando março começou, estava circulado no meu calendário o dia 13. Dentre as exibições de 8 1/2 na Mostra Fellini do Centro Cultural Banco do Brasil, era a dessa data que eu poderia ir. E não há muitos filmes que eu queira mais uma oportunidade para ver no cinema do que esse.
Ser um adolescente cinéfilo no interior de São Paulo na década de 2000 era difícil. Logo que eu descobri essa paixão estranha, que ninguém da mesma idade entendia, comecei a rodar de locadora em locadora tentando achar os filmes considerados grandes clássicos do universo, indispensáveis para todos os amantes da sétima arte. A tarefa era hercúlea, mas divertida.
Um dia, achei 8 1/2 em uma dessas locadoras. Eu tinha 14 anos. Não entendi nada. Odiei. Passei a, invariavelmente, dar ao filme a cotação de uma estrela em fóruns e sites de cinema. Até amadurecer e perceber que, na verdade, não existia como eu ter qualquer avaliação sobre uma obra dessa complexidade com a minha cabeça da época.
Ver 8 1/2 no cinema era uma chance de reparação pessoal com Fellini, de quem vi muitos outros filmes depois e amei vários, e comigo mesmo. Mas aí, vocês sabem, veio o Coronavírus.
Não fui ao cinema naquele dia, nem em nenhuma outra oportunidade desde então. Eu tenho dois empregos atualmente, um integralmente via home office, outro relacionado a futebol e estádios. O segundo, vocês sabem, deixou temporariamente de existir. Então se março não me deu a chance de me reparar com 8 1/2, pelo menos houve tempo livre suficiente para um dos melhores meses em questões cinematográficas em anos.
E, claro, para um pouco de Fellini.
Foram quinze filmes vistos no total. Se o texto de fevereiro, quando eu assistira a apenas dez, já ficou gigante, esse seria uma bíblia. Portanto, cortei o resumo em duas partes: A segunda sai na próxima semana.
Melhor filme visto no mês, contando revisões: A Doce Vida, de Federico Fellini
Melhor filme visto no mês, sem contar revisões: Ser ou não Ser, de Ernst Lubitsch
Pior filme visto no mês: O Poço, de Galder Gaztelu-Urrutia
Sem poder ir ao cinema no dia 13 assistir a 8 1/2, decidi fazer uma sessão dupla Fellini em casa com a minha namorada. No cardápio, A Estrada da Vida, que eu nunca tinha visto, e A Doce Vida, meu preferido do mestre italiano.
São dois filmes muito diferentes mas que, no fundo, chegam ao mesmo lugar.
Fellini é um cineasta muito associado com o circo, com a tradição da comédia italiana, com o olhar mais lúdico para as coisas. Isso é claríssimo em A Estrada da Vida, um filme sobre artistas nômades que fazem pequenas apresentações em cidades da velha bota. Mas a realidade por traz dessa magia é bem diferente: Existe ali a brutalidade, a dificuldade, a falta de sentido da existência.
O importante aqui é notar que o cinema italiano do pós-guerra é todo neo-realista, atores amadores interpretando as mazelas de um país destruído. Fellini participa desse movimento ativamente. A Estrada da Vida, um filme de 1954, é o momento de ruptura. Apesar de muitos elementos desse movimento cinematográfico tão importante ainda estarem lá, o lado lúdico do cineasta começa a tomar conta.
Porém, ainda é um tomar conta um pouco tímido. O que fica é a imagem de uma vida de sonho que está longe de ser um sonho: Na verdade, a estrada é em busca de uma felicidade que provavelmente é impossível.
Seis anos depois, Fellini faria A Doce Vida, uma de suas grandes obras-primas. Ele troca a vida sofrida de artistas de rua pela luxúria da aristocracia italiana, a simplicidade pela ambição absoluta. Mas, mais uma vez, faz um filme sobre a busca por uma felicidade que provavelmente é impossível.
Vou copiar aqui o que diz sobre essa obra-prima Roger Ebert, um dos grandes críticos de cinema da história: “Filmes não mudam, mas seus espectadores sim. Quando eu vi “A Doce Vida” em 1960, eu era um adolescente para quem a doce vida representava tudo o que eu sonhava: pecado, glamour exótico europeu, o romance cansado do jornalista cínico. Quando eu vi de novo, em 1970, eu vivia uma versão do mundo de Marcello: A North Avenue de Chicago não era a Via Veneto, mas às três da manhã, os habitantes eram tão coloridos quanto e eu tinha a idade de Marcello. Em 1980, Marcello tinha a mesma idade, mas eu era dez anos mais velho, tinha parado de beber e não via ele como um modelo de vida, mas como uma vítima, condenado a uma infinita busca por felicidade que jamais seria encontrada. Em 1991, eu analisei o filme frame a frame na Universidade de Colorado. Marcello ainda era jovem, e mesmo que antes eu o admirira ou criticara, agora eu o amava e sentia muita pena. Quando eu vi o filme após a morte de Mastroianni, eu pensei que ele e Fellini tiveram um momento de descoberta e o fizeram imortal”.
Sem dúvidas, essa experiência existe e é perfeita: Na adolescência, eu também invejava Marcello, mas hoje é fácil perceber a pessoa terrível que ele é, bem como todos os demais que o cercam, e ao mesmo tempo sentir pena por essa existência tão vazia.
Além de toda a profundidade, esse é um filme com uma ambição formal inacreditável, dividido em um formato de mosaico com sete partes que não se conectam diretamente com as outras. Não importa como você define uma obra-prima cinematográfica ou qual é o seu conceito para aplicar essa palavra: A Doce Vida certamente se encaixa.
A Estrada da Vida (Federico Fellini, 1954) ****
A Doce Vida (Federico Fellini, 1960) *****
O MUBI fez em março uma retrospectiva do diretor inglês John Schlesinger, um dos principais nomes do movimento chamado kitchen sink realism, importante na Inglaterra dos anos 60. Mais tarde, o cineasta faria fama também em Hollywood, até vencendo o Oscar por Midnight Cowboy.
Mas o curioso disso é que Schlesinger dirigiu um filme que pode praticamente ser considerado o A Doce Vida britânico: Chama-se Darling, e aqui no Brasil recebeu o terrível subtítulo A que Amou Demais.
Muitos elementos são convergentes entre os dois filmes: Um personagem central, que aqui é uma mulher, transitando por uma elite podre em busca de migalhas de felicidade. E, é claro, elas nunca vêm.
Darling não é nem de longe o mesmo filme que A Doce Vida. Falta a mesma ambição formal de Fellini, falta a coragem de ir mais às entranhas desse mundo, falta deixar com que tudo se desenvolva. Quando ele vai a fundo, principalmente nas cenas de Paris, vive seus melhores momentos. Vale pela ótima Julie Christie, que venceu o Oscar de melhor atriz pelo papel, e por esses momentos mais corajosos.
Vale citar que Darling já é um filme fora do chamado kitchen sink realism, que é basicamente o melodrama da classe operária, um movimento que tentou levar às artes (ele não é exclusivo do cinema) os jovens oprimidos pela máquina do trabalho e seus temas recorrentes, como sexo, álcool e as descobertas da vida adulta.
O melhor representante de Schlesinger dentro desse movimento é, sem dúvidas, A Kind of Loving, mais um filme que recebe no Brasil uma tradução bastante ruim, no caso, Ainda Resta uma Esperança.
Nele, vemos todas essas características: Jovens trabalhadores em situações complicadas, o sexo fora do casamento, as problemáticas relações familiares, as dificuldades financeiras. Os personagens também estão longe de serem boas pessoas, e isso colabora bastante com o sentimento de inquietude que o filme transmite.
É um filme britânico ao extremo: neblina, homens bêbados em pubs, moralismo velado, operários. E dentro dessas características, Schlesinger entrega um ótimo trabalho.
No meio do caminho entre Darling e Ainda Resta uma Esperança, tanto em data como em tema, está Billy Liar. Nele, todos os elementos desse melodrama da classe operária estão presentes, porém, com uma pequena subversão: O protagonista é um mentiroso compulsivo e o tom principal é o de comédia.
Muita gente gosta bastante de Billy Liar, mas o tom de comédia para tratar desses mesmos temas, como sexo fora do casamento, sofrimento do jovem operário, dificuldades com a família e afins, acaba não tendo o mesmo impacto como o enfoque mais melancólico, e tão mais inglês, de Ainda Resta uma Esperança. É incrível como Julie Christie aparece por cerca de quinze minutos e rouba o filme todo para ela, prenunciando o que aconteceria depois em Darling.
Schlesinger foi um cineasta bastante interessante e talentoso, e uma retrospectiva mais completa de suas obras também seria uma ótima ideia.
Ainda Resta uma Esperança (John Schlesinger, 1962) ****
O Mundo Fabuloso de Billy Liar (John Schlesinger, 1963) ***
Darling — A que Amou Demais (John Schlesinger, 1965) ***
Os cinemas brasileiros estão fechados. Os grandes lançamentos do circuito foram adiados por tempo indeterminado. Hollywood não sabe como lidar com a crise. Até mesmo o festival de Cannes não tem data para acontecer e corre risco de cancelamento.
Mas antes de toda essa catástrofe causada pelo coronavírus, foi possível pegar dois filmes em cartaz no mês de março. Os dois são norte-americanos e fizeram um certo sucesso de bilheteria.
O primeiro deles foi Dois Irmãos, mais nova animação da Pixar. Eu gosto muito de várias das obras dessa produtora, e mesmo com o hype sobre esse lançamento não sendo o mesmo, decidi conferir.
É um filme que tem algumas características positivas que remetem ao que a Pixar faz de melhor: Um mundo próprio extremamente bem construído, mitologia capaz de nos fazer pensar nela por dias, um componente emocional por trás de tudo que fisga não só as crianças, como também os adultos.
Podemos dizer, pelo menos, que o filme funciona. E se não funciona mais, é porque corta as suas próprias asas, não desenvolvendo o que tem de mais interessante, como os personagens secundários, a questão de como era o mundo enquanto a magia existindo e as dificuldades impostas durante a aventura.
Também faz falta uma emoção mais genuína: É raro notar em filmes da Pixar uma forçação de barra em relação aos momentos que deveriam causar lágrimas, mas aqui isso acontece. O roteiro acaba sendo aquém do que a produtora costuma entregar e o produto final é prejudicado. Ainda assim, vale um ingresso.
Roteiro ruim é o principal problema de O Homem Invisível, um filme que começa extremamente promissor: O diretor Leigh Whanell toma algumas escolhas interessantíssimas, principalmente no que diz respeito a gerar suspense. A partir do momento que há uma desconfiança sobre determinado personagem ter forjado a sua morte e se tornado invisível, a câmera aponta muitas vezes para o nada, solução simples, mas criativa e eficaz.
Outro ponto positivo do filme é a subversão do gênero filme de monstro, que era tão comum na década de 1950 (O Homem Invisível, aliás, faz parte de um pacote de reboots dos clássicos da época) transformando o monstro de um ser sobrenatural em algo presente no dia a dia, assustador no mundo contemporâneo. No caso, o marido abusivo.
Todas as boas ideias se perdem na segunda metade, quando o filme se torna mais um suco de filme de terror genérico. Abandona completamente a lógica, é cheio de decisões incrivelmente burras dos personagens, cai nos piores tipos de manipulação possíveis. Até mesmo a câmera, que vinha tão bem, se entrega à mediocridade.
Podemos dizer que O Homem Invisível é um dois filmes em um: O primeiro é bom e promissor, o segundo, uma tragédia.
Sem cinema para frequentar, a Netflix é a forma de ver filmes contemporâneos. O Poço, espanhol, é um que vem fazendo bastante sucesso. E esse, sim, é inteiramente uma tragédia.
Para começar, ele tem uma alegoria política extremamente óbvia, que não pede mais do que cinco minutos para ser totalmente entendida. E essa alegoria não se desenvolve em nenhum momento, ficando cada vez mais risível com o quanto é rasa e vazia.
Isso ainda seria tolerável se o filme não se levasse a sério, ou se buscasse ser divertido. Mas não: Ele sofre de síndrome de Darren Aronofsky, e precisa gritar a todo instante OLHA COMO EU SOU IMPORTANTE e OLHA COMO EU SOU INTELIGENTE, VOCÊ NOTOU MINHA ALEGORIA POLÍTICA???
A pior parte é a clara opção pelo grotesco desncessário, pelo choque fácil e burro. Por isso, várias cenas escatológicas são incluídas sem qualquer propósito e, ainda com menos função de existir além de causar repulsa no público, aparece UM CACHORRO SALSICHA apenas desenhado para o sofrimento.
É o tipo de filme que não se salva em absolutamente nenhum aspecto, que mira em uma importância política e acerta no ridículo. Mas que, inexplicavelmente, encontra algum tipo de sucesso com o público.
Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (Dan Scanlon, 2020) ***
O Homem Invisivel (Leigh Whanell, 2020) **1/2
O Poço (Galder Gaztelu-Urrutia, 2019) 0
Na próxima semana, volto com os outros sete filmes de março. Até lá!