Os meios e os fins em Watchmen

Série da HBO atualiza o universo criado na HQ com o fascismo como pano de fundo

Helton Lucinda Ribeiro
Revista Subjetiva
5 min readJan 11, 2020

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Houve um conflito racial, em 1921, que resultou no massacre de parte da população negra da cidade de Tulsa, Oklahoma, por “cidadãos de bem” brancos. Apesar da dimensão da carnificina (até aviões foram usados no ataque), a história permaneceu praticamente desconhecida do público durante décadas. Eu mesmo não a conhecia até ver Watchmen, da HBO. Esse resgate histórico, por si só, já faz da série um dos grandes lançamentos televisivos de 2019.

Enquanto a história em quadrinhos de Alan Moore e Dave Gibbons, lançada em meados da década de 80, tinha como pano de fundo a Guerra Fria, a série capta questões centrais de nossa época, principalmente o retorno do fascismo. No compartimento secreto de um armário você não encontra mais o uniforme de um super-herói, mas a fantasia infame da Ku Klux Klan.

Originalmente, a HQ era uma reflexão sobre o dilema “quem vigia os vigilantes?”, formulado pelo poeta romano Juvenal. Moore levava a equação às últimas consequências com o acréscimo de um fator: e se o vigilante tiver poder absoluto? Nesse caso, o melhor que poderia acontecer é que ele se desinteressasse por nós.

Nas tradicionais histórias de super-heróis, os vigilantes se restringiam a combater o crime (leia-se defender a propriedade privada), muitas vezes em estreita colaboração com a polícia. Ou então, tinham de lidar com oponentes igualmente poderosos. Mas não passava pela cabeça de um Superman ou de um Thor (a não ser em uma ou outra Graphic Novel) combater problemas como a fome e o aquecimento global.

Por que não o faziam, se eram dotados de capacidade para tanto? Moore e Gibbons nos mostraram que talvez não fosse uma boa ideia.

Em Watchmen, a HQ, um dos vigilantes, Adrian Veidt, o Ozymandias, percebe que trocar sopapos com bandidos é apenas enxugar gelo. Enquanto isso, o conflito entre Estados Unidos e União Soviética coloca a humanidade à beira da hecatombe nuclear. Veidt concebe um plano para estabelecer a paz mundial. Ele quer uma solução definitiva, que permita a construção de um novo modelo de sociedade. Algo que nem mesmo o todo-poderoso Dr. Manhattan oferece.

A série vai mostrar como estão as coisas 34 anos depois de o plano de Veidt ser posto em prática.

Velhos e novos personagens

Moore não teve nenhum envolvimento com a produção da HBO (ele tem renegado as adaptações de obras das quais não detém os direitos autorais), mas o universo criado por ele e Gibbons retorna, pelas mãos de Damon Lindelof, com uma ironia e um charme ausentes da versão cinematográfica de 2009 dirigida por Zack Snyder.

Alguns personagens originais reaparecem e novos são apresentados. Todos muito bem construídos, à exceção de Adrian Veidt (interpretado por Jeremy Irons), que foi caricaturado na série. Decisão polêmica, pois tem efeito atenuante sobre as atrocidades cometidas por ele.

Na HQ, Veidt não correspondia ao estereótipo de cientista louco. “Os olhos dele são tristes e sábios”, observa Dr. Manhattan durante uma visita ao bunker de Ozymandias. Era um personagem altivo e racional, capaz de conquistar a anuência de Manhattan ao seu projeto genocida. E isso o tornava ainda mais perturbador.

Os EUA têm um presidente progressista, o ator Robert Redford, contraponto ao conservador Ronald Reagan dos anos 80 (na HQ, em que os americanos venceram a Guerra do Vietnã e não houve Watergate, o presidente era Richard Nixon, sucessivamente reeleito). Mas o mundo não parece ter melhorado muito. A ameaça agora é uma organização terrorista e supremacista branca chamada Sétima Kavalaria (referência ao regimento do genocida General Custer), cuja origem remonta à Ku Klux Klan.

Os membros da Sétima Kavalaria usam um arremedo da máscara de Rorschach, o herói explicitamente fascista da HQ. Os policiais também usam máscaras para ocultar suas identidades, proteção adotada após atentados ocorridos três anos antes. A corporação tem por lema a frase do poeta Juvenal, em latim, quis custodiet ipsos custodes? — seguida da resposta em uníssono nos custodimus, ou seja, “nós vigiamos”, uma contradição em termos.

Embora o “vigilantismo” seja proibido, alguns policiais agem como os vigilantes mascarados do passado, entre eles, Angela Abar, a protagonista mulher e negra. A série acerta ao colocar o racismo em foco e escolher protagonistas negros. Há uma autêntica luta por justiça como fio condutor da história, desde o massacre de Tulsa, ainda que os personagens não a compreendam totalmente. Mas essa discussão é levada só até um certo limite e se dilui no final.

Heróis e vilões

O caminho desbravado por Alan Moore mostra o quão fascistas são os próprios vigilantes. Heróis e vilões são as duas faces de uma mesma moeda. Super-heróis surgem para combater problemas que não existiam antes deles, ou que foram criados por eles próprios (Batman e Coringa são o exemplo clássico, devidamente explorado por Moore em A Piada Mortal).

Fruto de uma ideologia burguesa, os heróis dos quadrinhos sempre defenderam o primado da lei. “Confiem na lei”, diz o delegado Bass Reeves, personagem real retratado em um filme mudo no primeiro episódio de Watchmen. Mas lei e justiça são coisas muito diferentes. Cumprir a lei não implica escolhas morais, mas apenas obedecer a um código escrito. Fazer justiça, sim, implica escolha, inclusive a de desafiar a própria lei quando esta se revela injusta.

Os meios, por sua vez, não são um detalhe. Como disse a militante e teórica socialista Rosa Luxemburgo, meios imorais conduzem a fins imorais. Tanto a HQ quanto a série Watchmen apresentam a imoralidade na relação entre fins e meios em sua máxima expressão.

Os fascistas da história almejam poder, poder absoluto. Mas o que os distingue daqueles que são capazes de praticar ou consentir com assassinatos em massa em nome de uma causa nobre? Ou daqueles que são capazes de torturar para salvar milhões? O desfecho da série propõe uma espécie de ajuste de contas com o final da HQ, mas as ambiguidades ainda estão lá.

Ambiguidades costumam ser o ponto forte de uma obra aberta. Mas são arriscadas quando se discute fascismo e heroísmo. Qualquer um que tenha se sentido incomodado ao ver o boneco inflável do Sergio Moro vestido de Superman sabe do que estou falando. Aliás, o traje de Ozymandias lhe cairia melhor.

Apesar do mal desatado nó górdio do fascismo, Watchmen ainda faz muito sentido, não só para a realidade norte-americana. No Brasil, nesse interregno de trinta e poucos anos, nós fomos dos momentos finais da ditadura para a ameaça fascista do bolsonarismo. Como disse o Dr. Manhattan, “nada chega ao fim. Nada”.

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