Púrpura interrompido

A esperança é a última que morre. Mas morre.

Rafael Oliveira
Revista Subjetiva
4 min readNov 14, 2020

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Ilustração feita pelo artista Sakoasko

Tantas crônicas de amor que não te dedico, pois sua cronologia é com outro.

Vocês em valsa. Ele sabe mover os pés como se flutuasse, pisando em nuvens de algodão. E eu peço desculpas a mim mesmo, embora não haja jeito. Eu confundo forró com balé. Só aprendi a valsear em terreno escarpado.

E vou pisar nos seus pés.

Totalmente dicotômicos, sem harmonia. Um tambor e uma harpa. A verdade: eles pulsam vidas enquanto meu coração se retrai, esperneia, apodrece e murcha.

Contudo, não é sobre ritmo.

Outro dia sonhei com você. Sua fricção era no corpo de outro, um terceiro (e contando…), porém na minha casa, bem no cômodo ao lado. Incendiou todo um quarteirão, aqueceu tudo, menos as minhas mãos.

Eu me pareço muito com você.

Nessa finitude de vocábulos, quiça exista a resposta. O devaneio é fraco. Poderia fazer uma canção e talvez você entendesse, me olhasse gentilmente e dissesse que mereço algumas das migalhas que você deixa cair da mesa farta. Que posso ficar no seu refrigerador. Ou dissesse “Não há jeito, nada posso fazer com isso aí dentro do seu peito”.

Você só me vê como seu gêmeo.
Já você é o atual endereço de minhas vontades.

Enquanto estava moldando meu vaso de argila para lhe entregar (a forma minuciosamente pensada), o outro já comprou-o pronto. Perco/perdi tempo demais em significados, em profundidade e em esculpir as coisas até que eu acerte a maldita simetria que termina torta, desalinhada. Perco/perdi tempo no ensaio, nas suposições, enquanto as cortinas se abrem e o espetáculo já começou. “E que espetáculo!”, você não só diz, mas coloca aquela entonação de pergunta meio afirmação, como um pai orgulhoso do sucesso público do filho. E olha para mim, esperando confirmação e recebe em resposta um falso sorriso (O que eu poderia dizer?).
Mas não é sobre paternidade.

A minha terapeuta disse que sou excessivamente mental.
Eu sou covarde.

You be heavy in my mind, can you get the heck out?
I need rest now, got me bummed out
[…]
I try to keep from losing the rest of me
I worry that I wasted the best of me on you

Você sangra pelos meus dedos, entra por todos os meus poros. Não sai.

Em 2012, inventou de sofrer e tanta coisa se deu depois disso. Nós (re)nascemos. Essa nossa conexão é uma reverberação, partilhar traumas, competir quem teve a pior história de quase morte, o medo de quase ser pego pela santa inquisição, decepção infantil, ter o o senso próprio de valor pulverizado, amor puro negado, para no fim, descobrir que os únicos vencedores somos nós.

Ás vezes você é o reflexo na água do meu Narciso.
Meu guarda-chuva.
Meu canivete.

Gotta let go of weight, can’t keep what’s holding me
Choosing wise
What will break up in front of me?
All the while, I’ll await my armored fate with a smile

O processo se arrastando l-e-n-t-a-m-e-n-t-e, quase parando. Tenho feito tudo que posso.(Parte de mim se nega atear fogo em você. Ainda figuro falsas projeções. E se você descobrisse meu endereço e viesse me arrancar do meu lar, de mim? E se você me segurasse quando ninguém mais estivesse por perto, forte, com medo de me perder?). Afasto algumas ideias como se fossem fumaça de cigarro, querendo adentrar meus pulmões.

Nem pra tu me ver escrevendo sobre você.
Mas você é um facínora, mesmo.

Gestei esse sentimento com tanta ternura… Acariciei meu peito nas noites vazias, sem dormir. Sofri um aborto induzido pelas suas não palavras, pelo nosso silêncio, nossa demora. Então, o Púrpura Interrompido.

Na minha terapia, me encontro com alguns personagens fictícios (Flea, Rue, Francis). Sentamos todos ao redor de uma mesa de tampo de vidro e conversamos como velhos conhecidos, pois todos temos algo em comum: saber o que é deixar ir. Não porque queremos e jamais porque sabemos que é o melhor, mas porque já nos deram o passaporte carimbado, só de ida, para outro continente, enquanto tudo o que conhecemos desvanecia ao toque da brisa. Não há retorno.
Podemos aproveitar, estamos na primeira classe.

Eu sou fraco. Embora reconheça que Atlas deixaria esse pesado céu se espatifar.

Ilustração feita pelo artista Laerte

É como diz aquele poema:

“Já vi a casa desabar,
o céu pegar fogo,
já pisei muito na merda.
mas meu amor por ti não é eterno.
eu sei me virar”.

Sou um fodido esperançoso, um maldito sonhador e um infeliz apaixonado. Embora nada, nada mesmo, permaneça.

Já engoli fogo. Vai ficar tudo bem.

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Rafael Oliveira
Revista Subjetiva

Você está nos meus dedos e nos meus pensamentos, embora só escreva de você para falar de mim. Rafaeloljs@gmail.com