Fonte: Pixabay

Passeio

Joneverso
Revista Subjetiva
3 min readMay 2, 2017

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“Para onde vamos hoje?”

R. olhava para o ventilador de teto girando lentamente na sala de estar, num dia atipicamente quente de outono que se aproximava do inverno, deitado no colo de M., quando fez essa pergunta. Era um dia de semana — talvez quarta-feira — e o tédio tomava conta de ambos após um almoço tardio. Àquele tempo desempregados há alguns meses, fruto de uma obra do destino que fez com que tanto R. quanto M. fossem demitidos na mesma semana, ambos decidiram aproveitar esse tempo livre para conhecerem melhor a cidade, em longas caminhadas sem um destino fixo, além de ser uma forma de distraírem as mentes com os sucessivos “nãos” que ambos recebiam em entrevistas de emprego, o que progressivamente lhes desesperava diante do dinheiro que minguava da conta bancária de ambos. Caminhavam por ruas desconhecidas, entravam em prédios históricos, visitavam museus, conheciam exposições, passavam horas deitados nos gramados dos parques, percebiam uma outra cidade cujo detalhes passaram totalmente despercebidos, diante da pressa urbana as quais somos submetidos quase que a todo momento.

Mas especialmente naquele dia M. não queria sair de casa.

“Não sei, hoje tô com medo. Medo das pessoas me olharem com uma cara do tipo 'por que você tá andando na rua assim, tranquilamente, não trabalha não?’. Na verdade, hoje não tô afim de pessoas. E tenho medo disso me fazer ter crise de novo”.

Fazia duas semanas que M. parou de tomar remédio para controlar a ansiedade, esse fruto do seu antigo trabalho, das contas a pagar, da sua adolescência difícil, do bullying sofrido na infância, dos relacionamentos abusivos, dos prédios comerciais que por dentro pareciam presídios, das paredes brancas, câmeras de segurança, bedéis e um ensurdecedor sinal de entrada, intervalo e saída, todas essas características de uma construção que lembra um manicômio. Após um período de tratamento, M. parecia caminhar para a recuperação. Mas naquele dia, M. precisava estar consigo mesma. A sensação de que as ruas trariam uma sensação de opressão era crescente, naquele momento.

Mas R. não se tocou. Sempre teve problema de ser muito tapado, ao ponto de demorar muito para perceber tudo. A despeito disso, R. era ótimo para M. Também como ela, precisou cuidar de seus transtornos mentais durante um bom tempo, fruto de um relacionamento bastante conturbado com sua família, e por isso conseguiam entender os problemas do outro. Era o caos mental que os unia e protegia. Mas M. não se tocou. Saiu da posição em que estava e ficou sentado ao lado dela.

“Ah, então vamos para o parque, um lugar mais vazio, onde possamos contemplar a natureza.”

“Tá quente.”

“Tem aquela padaria que nunca fomos.”

“Porra, acabamos de almoçar.”

“Ou podemos assistir um filme, que tal?”

M. fuzilou R. com o olhar. Aquilo foi o suficiente.

“Tá, desculpa. Eu tava empolgado, acabei não te escutando.”

“Tudo bem. Vamos assistir um filme aqui mesmo. O que tem no Netflix pra gente?”

Ligaram a TV. Começaram a navegar pelo catálogo extenso de filmes, seriados, desenhos e documentários. Tornou-se ritual percorrerem todo o catálogo da Netflix, indecisos diante de tantas possibilidades de escolha. Às vezes gastavam quase uma hora nisso, era quase um passeio virtual pela lista de obras a serem assistidas.

Fora que também tinham sinal de TV a cabo. A antiga inquilina nunca pediu para desativar e a operadora nunca veio buscar o decodificador. Gastavam mais tempo procurando o que assistir do que usufruírem um programa de fato. Sempre era difícil escolher entre reality shows estadunidenses sobre sub-celebridades, reprises de filmes antigos, programas de competição entre cozinheiros amadores, ou as horas e horas de propaganda de produtos da Polishop.

Procuraram o que assistir por quarenta minutos na Netflix. Ficaram com a sensação de que já haviam assistido absolutamente todo o catálogo. Mudaram para a TV a cabo. Depois de um tempo indo de canal a canal, acabaram deixando num documentário sobre predadores selvagens.

O tédio tomou conta de ambos. Após alguns minutos, dormiram por horas, com a TV ligada e os celulares ligados em cima da barriga.

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