Peixe-morto

Jonatan Corrêa
Revista Subjetiva
Published in
4 min readFeb 25, 2020

Ele havia se deixado despencar no sofá há uns dez minutos. Mirava o ventilador de teto. Desligou a TV e por ali ficou, com suas olheiras. Ela, animada, adentrou a sala e, dando-se com a cena, largou-se ao seu lado. Cruzou as pernas e ajeitou a saia longa, florida.

- Que cara é essa? Tá arrependido de algo? Tá Preocupado? É muito visível. Ó! Aqui. Bem aqui, ó!

Ela apontou o indicador bem na cara dele, fazendo graça. Encostou-o em seu nariz. Ele despertou, agarrou sua mão e deu um beijo. Segurou-a junto ao próprio peito.

- Não provoca! Estou normal… Do que cê tá falando?
- Do seu olhar vidrado, de alguém revivendo algo lá de trás. Parecia hipnotizado. Abduzido!
- Não estou em lugar nenhum que não seja aqui. Só estou um pouco… não sei. Indisposto.
- Indisposto? Tá doente?
- Não, não. Doente não. É daquelas coisas que a gente sente e não sabe o nome.
- Xi… melhor descobrir, então. Essas coisas que a gente não conhece são as que mais matam! Não vai morrer, hein?
- Vira essa boca pra lá! Eu só fiquei pensativo… com essas notícias todas.
- Ah, já vi tudo. Que tá rolando? Manda.
- Uhm. Sabe quando tem algo que já aconteceu, e você tem medo que aconteça de novo?
- Tipo o quê?

Ele lançou-a um olhar franzido, de canto de olho. Tomou ar como se fosse dizer algo, mas desistiu.

- Ah, deixa pra lá…

Eles se entreolharam em silêncio.

- Que cê tá sentindo agora?
- Não sei. Cansaço. Um aperto aqui no peito. Mas não é só isso.
- Tá respirando curto, solta esse ar. Da barriga. Isso!

Ela descansou a mão sobre sua barriga. Ele relaxou um pouco, ainda que seguisse a ruminar algo indizível.

- Mas é aqui também, no estômago, ó. Nas entranhas todas, parece! Não é dor. É um sei-que-lá!
- Gases?
- Meu, tô falando sério…
- Gases são seríssimos! Milhões de pessoas sofrem, todos os anos.
- Pára com isso. Eu acordei bem. Mas aí, de repente, tudo ficou esquisito.
- Acho que você anda pensando demais. Na vida.
- Pensando demais?
- É. Ou sentindo de menos. Vendo problema onde não tem. Criando problema, sabe?
- Desde quando pensar cria problema? O problema está ali, e aí a gente pensa nele!
- Nem sempre. Uma minoria das vezes, na verdade. Porque se a gente sabe como resolve, aí nem fica muito pensando. Já parte pra próxima.
- Uhm…
- A gente tem essa mania de, quando tem dúvida em algo, ir até o limite do que sabe, e aí criar o próximo tanto.
- Como assim? Inventar mesmo, você diz?
- Aham. Inventar, deduzir… Sempre pra pior, né. O pior cenário, geralmente. Fica resolvendo o que nem tem. Se o cenário é terrível demais então, vixe! Aí vamos inventando outro, e outro, até conseguir resolver. Sem resolver nada, de fato, né.
- É, isso é. Acho que já tive isso aí.
- Claro que teve! Estava tendo agora! Tá dizendo que eu não sei do que tô falando? Sou vivida!
- Você é uma mala. Isso sim.

Ela riu branco. Ele riu amarelo.

- Fica aí, então. Com esse teu olhar de peixe-morto. Com essa cara amarrada, de quem tenta consertar um vaso espatifado só com o poder da mente.
- Acho que eu tava mesmo, fazendo isso. Na verdade, faço sempre! Você não?
- Faço às vezes. Nem sempre tem como evitar; só como saber. Porque sabendo que é assim, aí você pode tentar parar, quando acontece.
- Não sei se é fácil assim: “ah, resolvi parar de pensar.” É até pior! O mal-estar persiste e o problema também.
- Então. Mas pensar no problema não é resolver o problema, né? Ou você vai e resolve, ou então, caso não possa fazer nada naquele momento…
- É! E aí? E quando é importante, muito importante; só que grande demais para resolver?
- Eu costumo cantar.

- Tá maluca?

- Tô não. Você que tá, peixe-morto. Cantar é sanidade. É vida!
- E cantar, lá resolve problemas? Isso está mais pra uma fuga.
- Resolver, resolve não. Mas se os peixes-mortos cantassem, teriam vivido pra tentar de novo amanhã. Chacoalha aí! Sai desse anzol, bicho!

Sabida ela. Era sim. Serena, levantou-se e desamassou a saia.

- Você não entende… Não sente.
- Ô, se entendo. Sempre senti! Vem cá.

Pegou-o pela mão e puxou-o para o centro do tapete, para perto de si. Ele abraçou-a firme de volta. Sambaram de leve enquanto ela entoava: “amanhã vai ser outro dia! Amanhã vai ser outro dia!”
Ele era sortudo, e sabia.

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