As pessoas que não podiam sorrir

Gabriel Piazentin
Revista Subjetiva
Published in
3 min readApr 21, 2020
Foto de Mike no Pexels.

Hoje eu tive que sair de casa. No espelho do elevador, eu notei que era uma das pessoas que não podiam sorrir. Ainda assim, fiz o meu trajeto, a pé, com a pressa de um paranoico cuja ameaça invisível se encontra em qualquer espaço. Era jogo rápido: farmácia, mercado, casa.

Os passos ágeis que já me eram de costume se tornaram não apenas úteis em tempos assim: eles eram regra. Ou deveriam ser. Só eu que estou tão preocupado assim? Ninguém para dividir a minha ansiedade?

Nem pude olhar para o mundo ao meu redor — ele ficou restrito àquilo que me era possível ver pela janela da sala e do quarto. As árvores, em seu deleite centenário, bradavam as folhas em meio à onda de frio que agora chegava. “Você é muito mais forte que eu”, pensei, ouvindo um farfalhar de uma grande árvore que ficava no caminho. A simplicidade da resiliência dela me fez pensar que o som que as folhas faziam nada mais eram do que um riso de deboche, de mim e de todos nós, tão fracos e confusos.

A grande árvore com suas folhas talvez fossem a única fonte de risada aquele dia na rua. Ao meu redor, ninguém mais poderia sorrir. Eu olhava todos pelos quais passava pelo caminho. Ninguém tinha como sorrir. As mães, apressadas com seus filhos, seguiam um passo que os pequenos não tinham como acompanhar — e não vi sorriso nestes também. Acho que vi, de relance, um cachorro que passeava com seu dono nesse final de tarde. Me pareceu que o cachorro sorria, diferente do dono. O cachorro de nada sabia o que estava acontecendo, e então se permitia sorrir. Esse sorriso canino não estava escondido.

Cheguei à farmácia e busquei no balcão o que eu precisava. Ali, todos os funcionários, ninguém sorria. Entreguei a lista de remédios que minha mãe precisava para o coração. Em casa, minha mãe podia sorrir. Era apenas muito difícil de se fazer. Passei no caixa — como é caro manter vivo quem se ama — , e a pessoa que me atendeu, naturalmente, não sorria.

Mas algo aconteceu.

Quando eu recebi a sacola com os remédios e ouvi um “obrigada, volte sempre”, me pareceu escapar um sorriso. Não pela boca e pelos dentes, que estavam escondidos. E sim, pelo olhos. Havia tanto tempo que eu fiquei em casa olhando as janelas (de casa, da televisão, do computador, do celular), que quase esqueci da possibilidade de se sorrir com os olhos, escapando das máscaras que impediam a todos de sorrir do jeito que a gente havia se acostumado até então. Os tempos estão mesmo mudando.

Logo ali, com a minha tensão, afinal, não conseguia deixar de pensar que farmácia é, via de regra, um lugar de convergência de pessoas doentes, bem como consultórios médicos e hospitais. Nesse fim de mundo, encontrei um sorriso em fuga.

Passei no mercado e comprei o que meus fracos braços conseguiam levar: pão, um litro de leite, presunto, carne, alface e tomate. Ninguém no mercado podia sorrir. Desde os poucos consumidores que havia nos corredores aos atendentes de caixas. Em especial esses últimos. Havia um incômodo gritante no silêncio do ar. Afinal, se a farmácia é um lugar de grande circulação de pessoas possivelmente doentes (mas não apenas de pessoas assim), o mercado é visitado por mais pessoas, doentes ou não, que sabem de sua doença ou não. O outro nunca deixou de ser um mistério, mas, em tempos como esse, o outro pode ser também uma forma de ameaça…

Não, calma.

Essa é a paranoia falando mais alto.

Vamos sair dessa.

Não vamos?

Passei meus poucos itens no caixa: crédito ou débito, CPF na nota? Ao final, recolhi minhas sacolas e peguei a nota fiscal do apreensivo atendente. Nenhum de nós dois podia sorrir. Então eu fiz o que mais sentia falta nesse momento. Eu lhe sorri. Com os olhos.

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