Por Debaixo dos Panos

Uma carta (quase) invisível

Julia Caramés
Revista Subjetiva
4 min readJun 22, 2020

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É possível que você já tenha cruzado diversas vezes com aquela que pode ser ou será o grande amor da sua vida. E agora, tentando sufocar esse milésimo de segundo que atravessa o instante, você vai tentar agarrar também todas as possibilidades.

Se trombaram numa calçada apertada no centro da cidade, você encarando o asfalto e ela andando com pressa. Você até previu que ela viria por aquele pedaço e admirou a velocidade de quem tem fôlego para fazer acontecer. A mulher dos seus sonhos carrega esse ímpeto de bravura como um suspiro que antecede o que vem pela frente. Você sempre ficou curioso com quem corta caminho e mesmo assim é capaz de se atentar aos mínimos detalhes.

Você não imaginaria que a noite produziria tamanho ritmo apenas para que você pudesse olhar nos olhos daquela que será sua amante única. Dividiram a fila do bar, ficaram lado a lado na área destinada aos fumantes, fumaças dos cigarros se entrelaçaram mas você supôs que ainda não tinha conhecimento prévio sobre o que estava por vir e imaginou que aquela ainda não era a hora certa de fazer as pazes com a casualidade.

Então vamos adiantar alguns capítulos desse romance nada convencional. Reconhecer aquela que será sua companheira na contagem dos dias não foi e não será tarefa fácil. Apenas as mãos pesadas do tempo podem empurrar e retirar com certa doçura os véus que cobrem seus pensamentos no agora.

Agora, depois e antes. Como você bem sabe, chegará o momento de contar àquela que finalmente você encontrou o que julga ser seu grande amor. E que amor é sentimento elástico e segue seu curso natural nas coisas. Não há equação matemática que delimite seu território na razão. Bem sabemos que ao abrir essa porta, você fechará outras atrás de si.

Você enfrentará suas sombras, seus medos mais íntimos e vai se despir dos clichês intermináveis para tentar explicar que ela é a razão de você estar aqui e não só do seu viver. Há tempos você vêm planejando a performance dessa cena: vai apagar a luz e acender um abajur a fim de criar um clima mais íntimo, talvez até proponha uma vela perfumada apesar de ainda não ter certeza se ela prefere lavanda ou citronela. Você já calculou que a essa altura, tentará esconder os tremores do corpo, bem como o suor que escorre pelas mãos e o excesso de taças de vinho que viriam a calhar para abafar o nervosismo e que por bem ou por mal não vão transparecer na sua voz. Você está seguro, firme.

Meditará então, sobre a relevância dos tropeços, de ter passado por todos os terremotos, altos e baixos, mudanças de ciclos, desânimos, alegrias, faltas no trabalho, noites de sono que se transformaram em dias e sonhos adentro e noites a fora que pulsaram uma realidade futura mas também breve. Insistirá na importância de relatar que consultou búzios, cartas, astrólogos e que sempre era avisado de que ela viria para curar dores que já não eram mais tão suas, mas dela e também do mundo.

Tentará fielmente explicar que assim, como você bem sabe, nós que somos gente, temos, as pessoas têm, um jeito estranho de sentir as coisas. As emoções por vezes são difíceis de se expressar corretamente. Mas o silêncio é capaz de transmitir até as frases não ditas, as insônias inexplicáveis e o tempo ilusório que derrama água fervente em toda a cronologia dos fatos que agora já pouco importam visto que bastava um passo curto para esse encontro se manifestar.

E que todo o antes sumiu de vista feito passe de mágica quando você finalmente a teve em seus braços pela primeira vez, com a certeza de que aquela, única, miúda e ao mesmo tempo tão gigante de ser, era sua enfim.

Enrijeceu a pele, dilatou os poros, arrepiou os pelos e os olhos não cansavam de desaguar porque a certeza é um fio cortante de alta voltagem que detém todo o significado da vida. E você, de um jeito ou de outro, sempre soube que dois círculos eletromagnéticos não poderiam girar separados por tanto tempo, pois a separação causava uma angústia que você não poderia mais sentir ou carregar.

As pessoas dizem coisas e por trás do que falam existe o que sentem e por trás do que sentem há o mistério. Camadas e camadas de magia que nem sempre conseguimos decifrar. Sobretudo, você repetirá que no amor não existem garantias, que as expectativas quase nunca se cumprem e que o que sobra é a vontade de acontecer. Amor é acontecer todos os dias. Mas disso, ela já sabe.

É provável que você já tenha cruzado por aí com aquela que você ensaia mentalmente dizer todas essas coisas. Ela, por outro lado, sonha semanalmente com um abajur que já mudou de forma, contorno e cor ao longo do tempo, mas insiste em aparecer e ela não sabe muito bem porquê. Fantasia e destino valsam procurando o melhor momento para se apresentar na pista de dança.

Com o amor, como você sabe, não seria diferente.

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Julia Caramés
Revista Subjetiva

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