Por que meu relacionamento aberto te incomoda tanto?
Carta pr@ mig@ inconveniente sobre a diferença entre fidelidade e exclusivismo.
O Fernando Alves escreveu no ano passado este belíssimo texto sobre as coisas muito bestas que pessoas em relações assumidamente abertas escutam por aí. É um artigo muito sensível porque é ao mesmo tempo autobiográfico e analítico. Como eu gosto dessa pegada, então, vou lançar uma questão nesse formato, e meu/minha interlocutor/a será aquel@ moralista-fals@-curios@-exclusivista universal que me aborda no bar sob o pretexto da curiosidade para me explicar o que eu sou, o que é a minha relação e por que ambos somos supostamente uma farsa.
O que acontece?!
Estou cá com meu namorado de boa no bar. A gente vem com um boyzinho ou conhece um boyzinho lá, flerta, dá uns beijo, faz uns carinho e vai tentar curtir a noite, tomar uns goró, com ou sem o boy. Era pra ser simples, não?
Mas aí tem uma galera que fica muito passada. Tem um povo que escarnece e fica zanzando em volta que nem urubu falando que delícia ou que safadeza. Acho uó.
Tem aqueles que se sentem muito convidados a participar de uma festa, eu não espero o carnaval chegar etc., e juro que entendo e acho amigável conquanto as pessoas não achem que eu sou obrigado a beijá-las só porque eu sou não-monogâmico.
Bom, tem aqueles que esperam o fumódromo pra fazer aquela série de perguntas e afirmações tão entediantes quanto previsíveis.
Eu não conseguiria. [Ninguém te perguntou 🤔] Mas vocês não têm ciúmzzzZzzz… Quem é namorado de quem aí? [etc.]
Até aí não custa nada educar um pouco as pessoas, certo? Mas aí tem sempre o/a Zé-Maria-ruela que vira e fala umas merdas presunçosas (às vezes com indisfarçável ar de despeito, às vezes por cretinice mesmo, senão por ignobilidade).
Por que vocês não são fiéis? Mas não tem fidelidade na relação de vocês, né? Ah, não é um namoro de verdade?! É permitido trair, daí. Pô, mas por que não deu certo entre vocês?
(Sem falar daquele filho da puta que chega te agarrando na pista e, quando você se recusa a beijá-lo, responde “ué, mas você beija todo mundo”.)
Em todo esse espectro de reações, da menos incômoda para a mais violenta, existe um denominador comum: são espontâneas e invasivas. -- O que parece fazer de três carinhas simplesmente bebendo juntos, trocando carinhos e alguns beijos um grande evento nesse bar imaginário que descrevi.
Se tem volatilidade, confusão de papéis fixados, indefinição entre polos relacionais (casamento versus promiscuidade) e, sobretudo, liberdade, aí, incomoda.
Fica então a questão: por que a simples existência de arranjos minimamente alternativos ao par nesse bar imaginário é suficiente pra que tantas vezes algumas pessoas se sintam à vontade para se auto-interpelarem, virem nos interpelar e emitir seus pareceres pessoais sobre si e às vezes até sobre mim/nós?
Curiosidade não é moralismo ativo.
Eu não sei se é porque eu sou gay, se é porque lido-com e falo-sobre isso com naturalidade e brio, ou se é porque eu entendo e pratico (quando há segurança) o espaço público como o parque-de-diversões, por excelência, da pluralidade, do múltiplo e da democracia. Não sei se é porque dói demais para certas almas tupiniquins questionar a sacrossanta relação entre o indivíduo egoísta como unidade ontológica e a política pós-vitoriana falso-teleológica do casamento industrial, por sermos quase “ocidentais". Ou se seria, para as mesmas almas, por expor disruptivamente as entranhas de um sistema de convenções falido e fragilizado, por sermos amantes inveteradamente apaixonados da deusa Hipocrisia.
Sei que tem sido assim, e, por estar assim sendo, deixo cá um recado muito importante para aquel@s “mig@s” exclusivistas chat@s que insistem em cagar regra pras pessoas que estão em relacionamentos assumidamente abertos:
- Eu não devo explicação pra você nem ninguém do que eu estou fazendo no espaço público, a não ser que eu te ofenda como cidadão/ã.
Conquanto algo que eu faça não deponha contra suas liberdades cívicas, não há nenhuma força que me obrigue a explicar uma “conduta poliamorista" no espaço público. - Eu não quero saber a sua opinião se eu não perguntei sobre ela. Eu não perguntei sobre a forma como você lida ou não com esses assuntos.
Me deixa curtir minha noite, é muito chato ser interpelado o tempo todo quando você só quer curtir. - Você não está autorizado a qualificar minha/s relação/ões, sobretudo com presunção, sobretudo com mal secreto, sobretudo se eu nem sei quem você é.
Se nem eu que estou dentro do jogo sou muito afeiçoado a categorizar e definir meus relacionamentos, que dirá aceitar que alguém venha legitimar ou deslegitimar o que eu vivo, ou me explicar sobre algo que essa pessoa nem sabe como é.
Mas uma coisa eu sei explicar, e essa coisa é o que chamam por aí de fidelidade.
Fidelidade não é exclusivismo
Quando as pessoas são fiéis a alguém, a um coletivo ou a um ideal, não estamos falando afinal de uma forma de devoção orgulhosa (ou de orgulho devocional), aquele sentimento que te faz sentir íntimo, confidente e protetor de um preceito ético, definido por um valor, uma identidade ou uma relação? Não é porque celebramos esse orgulho e essa devoção sobre um vínculo humano/social (torcida organizada, veganismo, o cuidado por uma pessoa) que somos fiéis? Acaso não seria esse estado de redenção alcançado pela crença no cuidado, na responsabilidade e no afeto mútuos a tal da fidelidade?
O que diabos, então, tem a ver isso aí com ficar só com uma pessoa?
De uma vez por todas, exclusivismo não é fidelidade. Fidelidade é um princípio e um estado relacional. A fidelidade não pode ser cega, também, mas somente crítica, pois de outro modo trai a si. Exclusivismo, por outro lado, só é uma regra ou um conjunto de regras. A relação de obrigatoriedade entre essas duas coisas é uma construção histórica e social cada vez mais anacrônica e falida. Okay?
Amiúde, quando você reduz o conceito de fidelidade unicamente à observância da diretiva exclusivista, aí sim é que ele se esvazia do sentido moral que deveria ser pertinente. Aí as pessoas entram numa espiral interminável de caça à traição, quando na verdade o que tinham que se atentar era justamente sobre o estatuto do afeto, do cuidado, da responsabilidade emocional. Quando você chama de fidelidade a chave falseada do controle sobre as paixões do outro, aí é que você trai a si e ao outro, aí que você vilipendia a própria famigerada fidelidade.
Então, cuidado amig@ exclusivista, pois:
A farsa pode ser você!
Amig@s exclusivistas, parem de ficar julgando @s mig@s não-exclusivistas que tá feio. Isso só mostra o quanto vocês são inseguros em relação às próprias decisões sentimentais.
Essa prepotência valente e julgadora só expressa a conjugação entre a ansiedade desajeitada de categorizar os outros, a fragilidade das convenções nas quais você diz confiar, e o ser humano ultrapassado, retrógrado, anacrônico e moralista que você é.
Por detrás dessa sua autoconfiança passivo-agressiva se esconde uma alma frustrada com a incapacidade de transcender os próprios limites.
Para! Tá feio.
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