Por que o acesso incomoda?

Rafael Moreno
Revista Subjetiva
Published in
7 min readAug 7, 2020
Direitos de Imagem: C_Fernandes/Getty Images

Já parou para pensar como não conhecemos nossa cidade, nosso país, em toda a sua plenitude? Já imaginou o tanto de produtos que lançam e que a gente mal consegue imaginar em tê-los?Já parou para refletir qual a primeira coisa que acontece quando se começa a acessar novos lugares ou a consumir novos produtos?

A resposta, geralmente, é uma penca de gente dizendo o que você deve ou não fazer com seu próprio dinheiro. O que você deve ou não fazer com a oportunidade recebida. Como deve se portar ou agir.

Mas porque será que o acesso incomoda?

Exemplo como ponto de partida

Acho que o melhor exemplo que podemos tomar como ponto de partida para explicar porque o acesso de classes menos favorecidas a produtos e lugares incomoda tanto é relembrar aquela treta do MBL.

O grupo direcionou todo seu preconceito ao Emicida, julgando-o como hipócrita, pelo fato do mesmo ter sido fotografado em um evento de gala portando um terno do estilista Ricardo Almeida.

Esse exemplo se torna tão interessante porque carrega, numa só tacada (e isso não é mérito nenhum), todos os preconceitos e argumentos utilizados a exaustão por quem se incomoda com o acesso e a ascensão da classe trabalhadora.

Direitos de Imagem: Facebook

Velhos fantasmas

A velha utilização do socialismo, o inimigo invisível que sequer apareceu por essas bandas, para justificar o preconceito de classe social.

Afinal de contas, vivemos em um modelo capitalista que nos foi imposto. Quer você queira, quer não. Não existe a opção de não seguir o capitalismo. Você nasceu nele e tem que se virar nos trinta para sobreviver ao mesmo.

A “hipocrisia” apontada tem como objetivo segregar, afastar todos que estão no mesmo barco e enxergam alguém em ascensão, que veio do mesmo berço, como uma oportunidade, uma luz para os acessos e ocupações em diversos lugares que há muito são negados. Se sentem representados e isso é bem difícil de entender para quem nunca sentiu essa necessidade.

Aliás, é muito interessante observar que atribuem um comportamento mesquinho e egoísta quando alguém passa a ter condições de acessar os mesmos lugares. A ofensa proferida é dizer que, finalmente, são iguais.

Mas não são.

“Burguesia exploradora”

O segundo ponto a ser observado vem do termo utilizado em aspas, “burguesia exploradora”. As aspas revelam a descrença dos mesmos quanto ao fato do trabalhador ser, sim, explorado. E não é questão de maniqueísmo, como estamos acostumados a enxergar toda e qualquer situação.

Quer um exemplo bem recente? Veja e compreenda os recentes protestos dos entregadores de aplicativos.

Se por um lado vemos essas grandes empresas comprarem horários nobres nas televisões para destacar em seus comerciais o quanto trabalham para entregar seus serviços em plena pandemia, por outro vemos as mesmas empresas se isentando de quaisquer ligações com os trabalhadores que realizam seus serviços.

Centralizaram os bônus e soltam nas mãos dos trabalhadores todos os ônus possíveis. Mas a pergunta no final das contas é: quem, de fato, entregou os pedidos feitos em seu aplicativo, hein?

Não garantem condições mínimas de trabalho, sequer se preocupam com a saúde e bem-estar de quem, de fato, entrega todos os produtos. E como disfarçam? Com o uso da velha e manjada máscara do “empreendedorismo”. Faça seu horário. Escolha o quanto quer ganhar. Você define seu próprio trabalho. Na prática, temos entregadores que trabalham mais de doze horas por dia e parte dos ganhos vão para essas empresas.

Recomendo a leitura do artigo escrito pelo Leandro Machado, na BBC Brasil, escrito em maio de 2019, pra termos a noção de que essa paralisação e reivindicação não foi feita de uma hora pra outra.

Eles não vão entender o que são riscos, e nem que nossos livros de história foram discos

O rap, assim como o funk, é visto como algo subversivo. Taxados de apologistas do crime, direcionando suas vozes para a violência e sexualidade, ambos os estilos musicais não são vistos, pelas classes mais privilegiadas, como arte.

Isso se deve pelo gênero musical ter sua origem periférica. Quantas vezes assistimos programas policiais sensacionalistas que atrelam a violência policial ao “baile funk”? Como se o baile funk fosse algo abstrato, ou melhor, a definição de tudo que é ruim e errado e um passe livre para a justificativa da truculência policial.

Esse é o retrato que somos pintados para a elite do nosso país. Nós somos aceitos desde que pertençamos ao imaginário de como o pobre deve ser e agir. Mal educados, violentos, raivosos, tristes. Qualquer coisa diferente disso é visto como contracultura, que tem a sua perspectiva mudada quando adotada pela mesma elite.

Baco canta seus versos em Bluesman:

Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos
O primeiro ritmo que tornou pretos livres
Anel no dedo em cada um dos cinco
Vento na minha cara, eu me sinto vivo
A partir de agora considero tudo blues
O samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues
O funk é blues, o soul é blues, eu sou Exu do Blues
Tudo que quando era preto era do demônio
E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues
É isso, entenda
Jesus é blues
Falei mermo

E como bem disse Ronald Rios, o funk (e aqui tomo a liberdade de incluir o rap) incomoda por ser periférico. Segue seu excelente texto sobre.

O acesso e o consumo

Daí a gente chega num dos principais pontos. A ascensão e o acesso que as camadas mais baixas passaram a ter.

Esse mesmo acesso foi negado e envelopado, também, como consumo. Quantas vezes você viu uma foto de alguém com um celular bacana em sua casa de boas na comunidade, seguido de comentários do tipo “tem dinheiro para comprar celular, mas não tem para arrumar a casa”.

Entendam a carga que frases assim carregam.

Essas mesmas pessoas nunca voltariam o olhar para a mesma foto, se nela não tivesse o celular. A “preocupação” com a casa não existiria. Até porque o incômodo nunca foi com a condição social e sim com o acesso das camadas mais baixas aos mesmos produtos e lugares.

Com isso, nasceram e se popularizaram termos como “socialista de iphone”. Quantas vezes já escutou que tal rapper não é mais como antigamente, que ele se vendeu?

Porque o rapper, funkeiro, tem que falar somente da violência que passa diariamente? Porque, quando ele cresce e tenta expandir para diversas frentes, é taxado de vendido? Porque seu público é taxado como alguém que só consome violência?

Muito disso se deve ao olhar e ao entendimento errado onde cada um deve ficar.

Assim os estereótipos se fortalecem e, quando Mano Brown canta em Vida Loka Parte 2 que as vezes é bom gastar um faz me rir para seu próprio prazer, é também taxado de “hipócrita” ou quem só pensa em “ostentar”.

Porque, segundo essa visão preconceituosa, o pobre não pode se dar ao luxo de ter algo sem antes cuidar da sua vida como esperam que ele cuide. Ou seja, o dinheiro que ele ganha com seu trabalho suado acaba não pertencendo a ele, a não ser que ele faça o que esperam dele.

Não é questão de luxo
Não é questão de cor
É questão que fartura
Alegra o sofredor
Não é questão de preza, nêgo
A ideia é essa
Miséria traz tristeza e vice-versa
Inconscientemente vem na minha mente inteira
Na loja de tênis o olhar do parceiro feliz
De poder comprar o azul, o vermelho
O balcão, o espelho
O estoque, a modelo, não importa
Dinheiro é puta e abre as portas
Dos castelos de areia que quiser
Preto e dinheiro, são palavras rivais
E então mostra pra esses cu
Como é que faz

Lembram quando diziam que o Bolsa Família era esmola, que tinha que se ensinar a pescar e não dar o peixe? Quando o principal problema do Brasil foi o grande consumo da população ditas como classe “c, d, e”? Ou ainda que a cota nas universidades não é justo, porque cada um tem que fazer por merecer, ignorando toda a carga histórica que existe por trás disso?

Vejam como o problema nunca foi o consumo em si, mas sim quem consome.

Quem começou a ter acesso ao que antes eram negadas por sua condição social passou a ser taxado de consumista, comunistas/socialistas (ambos os termos usados de maneira enviesada como se fossem sinônimos de algo ruim, naquele velho maniqueísmo) causadoras dessa crise tamanha. Quando não colou, veio a negação do pertencimento.

“Ué, como assim você tem a mesma coisa que eu? Não era você o socialista e agora quer ter um iphone? Isso não passa de hipocrisia”.

E são essas mesmas pessoas diziam que foi do lado de cá que se criou o embate entre “eles e nós”. Fomos nós que dividimos a sociedade.

Veja bem, nós somos taxados como responsáveis por dividir uma sociedade que, desde o princípio, nunca aceitou a inclusão e a união. Não faz sentido, e não é pra fazer mesmo. Tudo isso não passa de um velho preconceito que existe desde que o mundo é mundo.

Logo mais vamo arrebentar no mundão

Vivemos em um país que, ao mesmo tempo que nos enchem de promessas e ilusões de que somos iguais e basta nos esforçarmos e sermos “pessoas de bem” para prosperarmos, fazem questão de nos manter distantes, carregados de todo o tipo de preconceito e usando-os de todas as maneiras.

A questão sempre foi o acesso e só tenho uma coisa pra te contar: se o grande problema for o acesso das camadas mais baixas aos produtos e lugares, quero dizer que estamos chegando. Quer gostem ou não.

E, olha, até que é bacana esse lugar. Vou ver se colo aqui com meu boot novo. Vou chamar os parceiros e as parceiras pra colar também.

Se não curtiu, melhor zarpar, porque não pretendemos sair daqui tão cedo.

--

--