Por que voltar a falar sobre a caça às bruxas?

Uma resenha do livro Mulheres e a Caça às Bruxas, da autora Silvia Federici.

Lara Pirro
Revista Subjetiva
5 min readApr 23, 2020

--

“A bruxa foi a comunista e a terrorista de sua época, quando foi necessário um mecanismo “civilizador” para produzir uma nova “subjetividade” e uma nova divisão sexual do trabalho em que a disciplina capitalista da mão de obra viria a se apoiar. Na Europa, as caças às bruxas foram os meios pelos quais as mulheres se educaram em relação a suas novas obrigações sociais e a maneira pela qual uma grande derrota foi imposta às “classes baixas”, que precisaram aprender sobre o poder do Estado para renunciar a qualquer forma de resistir a ele.” (p. 72)

A autora do livro Mulheres e a caça às bruxas; Silvia Federici é italiana e filósofa, também é uma das responsáveis pela campanha Wages For Housework (WFH), que reivindica salário para o trabalho doméstico, majoritariamente desempenhado pelas mulheres. Além do livro supracitado, a autora também escreveu O Calibã e A Bruxa; esta última é citada diversas vezes em Mulheres e a Caça às Bruxas, pois a autora faz uma revisão de teorias abordadas anteriormente para fundamentar as novas.

A obra em questão foi publicada no Brasil pela Editora Boitempo, no ano de 2019 e contém 151 páginas. Com uma leitura fluida, o livro conta com a tradução de Heci Regina Candiani, as ilustrações de Vânia Mignone, o prefácio por Bianca Santana e a orelha pela socióloga Sabrina Fernandes. A obra é dividida em duas partes maiores, sendo a primeira subdividida em cinco ensaios e segunda parte em dois ensaios. Apesar de tratar a respeito de uma temática ampla que se expande para diversas áreas do conhecimento, o livro tem uma escrita acessível e de fácil compreensão.

Na obra, a autora constrói sua análise partindo do processo de cercamento e privatização de terras comunais na Europa paralelo ao desenvolvimento do sistema capitalista, posteriormente ela se atém às motivações que culminaram nas primeiras acusações de bruxaria.

“…o que o capitalismo reintegrou na esfera do comportamento social aceitável para as mulheres foi uma forma de sexualidade dócil, domesticada, instrumental para a reprodução da força de trabalho e a pacificação da mão de obra. No capitalismo, o sexo só pode existir como força produtiva a serviço da procriação e da regeneração do trabalhador assalariado/masculino e como meio de pacificação e compensação social pela miséria da existência cotidiana.” (p. 68)

No decorrer da leitura, Federici vai demonstrando as marcas que esses processos de violência deixaram nos valores cultivados na sociedade e nas práticas culturais, um exemplo disso é a forma como é vista a sexualidade feminina. A autora também relaciona a pobreza como as acusações de bruxaria; “Eram mulheres que resistiam à própria pauperização e exclusão social”.

“Na figura da bruxa as autoridades puniam, ao mesmo tempo, a investida contra a propriedade privada, a insubordinação social, a propagação de crenças mágicas, que pressupunham a presença de poderes que não podiam controlar, e o desvio da norma sexual que, naquele momento, colocava o comportamento sexual e a procriação sob domínio do Estado”. (p. 54)

Posteriormente a autora se debruça na linguagem e nos traz o real significado da palavra gossip, no português; fofoca. Anteriormente a palavra era utilizada como sinônimo para “amigas próximas” ou “camaradas”, entretanto, sofreu um processo de ressignificação (no livro, a autora discorre a respeito) para receber o significado de “conversa fútil” ou “conversa que semeava a discórdia”. Segundo a autora; “em todo caso, a palavra tinha fortes conotações emocionais”.

A partir dessa discussão que Federici faz, podemos perceber, por exemplo, o quanto que incomodava o fato de que, mesmo privadas da educação, as mulheres ainda assim buscavam conhecimento, trocavam informações entre si e a união entre elas fortalecia um fluxo de conteúdo e experiências que elas vivenciavam, dando-lhes uma certa autonomia e domínio que posteriormente foi combatido com a ressignificação da fofoca.

“…Expressão que usualmente aludia a uma amiga próxima se transformou em um termo que significava uma conversa fútil, maledicente, isto é, uma conversa que provavelmente semearia a discórdia, o oposto da solidariedade que a amizade entre mulheres implica e produz. Imputar um sentido depreciativo a uma palavra que indicava amizade entre as mulheres ajudou a destruir a sociabilidade feminina…” (p.75)

A partir desse resgate histórico, Silvia Federici passa a demonstrar os efeitos desse processo violento na atualidade e como essa violência tem se repetindo em diversas partes do globo, configurando-se um problema mundial. Para elucidar, a autora traz fontes e exemplos de países africanos, como por exemplo no Congo, Quênia, Gana, Nigéria, entre outros.

“O ponto de vista mais convincente é de que essas caças às bruxas não são um legado do passado, e sim uma reação à crise social produzida pela reestruturação neoliberal das políticas econômicas da África.” (p. 115)

Posteriormente, a autora se aproxima da conclusão escrevendo a respeito do papel que os meios de comunicação desempenham nesse processo da caça às bruxas em alguns países da África: “A mídia ajudou nesse processo, sinal de que a nova “loucura das bruxas” não é um fenômeno puramente espontâneo. Em Gana, são transmitidos diariamente programas de rádio e televisão que relatam como as bruxas atuam e como podem ser identificadas.”(p.123)

Outro aspecto que não deixou de ser contemplado pela autora, é que ao finalizar o capítulo dedicado para analisar a atual ocorrência da caça às bruxas, aliada às privatizações, em países africanos, Federici destaca sugestões de ações para as feministas tanto da África, como do mundo. E dentre as sugestões, ela menciona experiências brasileiras, muito importante visto que os efeitos do neocolonialismo impactam outros continentes além do africano:

“Em outras palavras, os movimentos feministas, dentro e fora da África, não devem permitir que a morte e o fracasso de uma forma patriarcal de comunalismo sejam usados para legitimar a privatização de recursos comunais. Em vez disso, deveriam se envolver na construção de bens comuns totalmente igualitários, compreendendo com o exemplo de organizações que seguiram esse caminho: Via Campesina e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil, Zapatistas – todos que enxergaram a construção do poder das mulheres e da solidariedade como condição fundamental de sucesso.”(p.135)

Para concluir a obra, a autora finaliza colocando de forma clara da onde, majoritariamente, vem o ataque contra as mulheres; “…vem, sobretudo, da necessidade de o capital destruir o que não consegue controlar e degradar aquilo de que mais precisa para sua reprodução. Trata-se do corpo das mulheres, pois, mesmo nessa era de superautomação, nenhum trabalho e nenhuma produção existiria a não ser como resultado de nossa gestação.”(p.140)

“Por esse motivo, é importante haver um esforço para compreendermos a história e a lógica da caça às bruxas e as muitas maneiras pelas quais ela se perpetua em nossa época. Pois é apenas mantendo essa lembrança viva que poderemos evitar que ela se volte contra nós.”(p.141)

Algumas entrevistas e diálogos que a autora participou e estão disponíveis no youtube:

--

--