Por trás das câmeras.

O filme sem cortes.

Vitória Castilho Cohene
Revista Subjetiva
4 min readJul 15, 2020

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Meu pai bonitão por trás das câmeras em 199 e alguma coisa.

Meu pai tinha uma filmadora nos anos 90. Tecnologia das boas para a época. Compra que foi um investimento para ele, que queria registrar cada novidade da rotina com crianças em casa (eu e minha irmã).

Ano passado, no nosso último Dia das Mães com a família completa, conseguimos fazer algo que queríamos há muito tempo: sentar no sofá e assistir algumas dessas fitas antigas.

Foi um domingo de risadas.
Meu pai aparecia nas imagens apenas quando passava por algum espelho, ou quando sua sombra surgia no chão. Bem raramente, quando minha mãe roubava o papel de filmmaker (e aí aparecia acompanhado de uns dedos na tela e em umas cenas tremidas).

O lugar dele era por trás das câmeras. Captando as cenas.Vendo poesia e beleza no cotidiano. Analisando as personagens principais, as três peruas da vida dele, como sempre nos chamava. Personagens essas, que ele tem uma ótima parcela de crédito pela criação.

Ele transformava o dia a dia em filme. Às vezes, era comédia. As brigas, bobeiras e manias de duas irmãs crianças e bem diferentes, garantem umas gargalhadas. Às vezes, era romance, quando ele perseguia minha mãe pela casa para gravar os detalhes de tudo que ela fazia, enquanto mandava beijos e falava que amava a Udinha (Por que esse apelido? Também não sei ainda).
Às vezes, era terror também
, quando ele pegava minha mãe desprevenida -e brava- ou ficava andando com a filmadora enquanto ela resolvia sozinha todo o caos que reinava na casa.

Mas, ao assistir agora, vai ser para sempre um drama.
É que a gente já sabe como tudo acaba.

Ele não estava entre os personagens que apareciam o tempo todo, mas o narrador é peça essencial para toda boa e clássica história. E além disso, não tem filme sem quem o faça.

Lembro que naquele domingo no sofá eu perguntei: “Pai, por que você filmava tudo o tempo todo?”. Já dei essa resposta ali em cima, ele queria registrar os detalhes. Mas acho que era mais do que isso.

Meu pai era ótimo com as declarações de amor, mas no geral não era de colocar para fora os sentimentos mais internos dele no dia a dia (e hoje eu sei que ele sentia bastante por antecipação). Ele queria filmar tudo porque, lá em 1998, já pensava em como seria quando a rotina fosse diferente, nós fossemos adultas e como ele sentiria falta da vida com todo mundo reunido o tempo inteiro. Assistir é uma forma de reviver, e filmar era uma garantia que ele poderia ter isso. Além, é claro, de poder jogar algumas coisas na nossa cara e mostrar as birras da infância para nossas versões adultas.

Quando viajávamos em família, ele sempre tirava foto dos quartos / banheiros / janelas / detalhes nada a ver dos hotéis e pousadas. Registrava até a bagunça das nossas malas abertas no chão. E, claro, eu já questionei isso também.

“É só pra lembrança, filha”.

Ele também sempre pegava um guardanapo dos restaurantes que íamos e nele escrevia para a minha mãe: a data, a cidade e uma mensagem fofa para lembrar do momento.

Analisando, estou encontrando mais semelhanças minhas com ele agora que não está aqui, do que reparei a vida toda enquanto ele estava ao meu lado.

Em uma limpa de coisas antigas, encontrei uma “caixa de lembranças da Vitória”, que fiz desde bem pequena até quando eu tinha uns 13 anos.
Tinha tanta coisa! Ou melhor, tem. Não consegui me desfazer de tudo.

Se você reparar em um (dos muitos) papeis da minha caixinha, consegue perceber que eu não queria deixar de registrar um detalhe se quer.
O papel e caneta sempre foram para mim, o que aquela filmadora foi para o meu pai.

A gente se parece nisso. Muito.

Eu já não guardo mais papeis de bala, por exemplo. Mas aprendi a tirar foto de todas minhas hospedagens em viagens, das minhas malas abertas e bagunças no chão. Aprendi a tentar captar cada detalhe de coisas e momentos que sei que um dia vou sentir falta, de filmar e tirar foto de tudo que acontece. Talvez seja por isso que loto tantas contas do Drive.

Eu sei que, mesmo se na época daquela câmera fosse possível editar tudo na hora, ele não tiraria nada.
Pai, teu esquema era o mesmo que o meu: querer registrar o filme sem cortes. Afinal, a graça está nos bastidores.

Obrigada pelas fitas de lembrança e por me fazer perceber, mesmo depois de mais de 1 ano sem você, o quanto eu me pareço contigo. Só queria que você tivesse aparecido mais, para eu ter suas expressões do rosto e tiques do corpo eternizados também.

E, bom, o filme continua mesmo sem o diretor principal. As personagens e a trama seguem sua história.

Mas fica tranquilo, já sou adulta para assumir as filmagens e te prometo não deixar de ver beleza na nossa rotina.

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Vitória Castilho Cohene
Revista Subjetiva

Tinha tantas certezas, mas agora só tem a de que escrever alivia.