Porque a História não é achismo #DitaduraNuncaMais

carolina
Revista Subjetiva
Published in
5 min readApr 14, 2020
Gustavo Berocan Veiga “ABC da Ditadura” / ilustração

Tu sabes como historiadoras e historiadores produzem o que a gente chama de “História”? Essa com H maiúsculo e tudo mais?

Nas ciências, sejam elas humanas, da saúde ou exatas, existe um negócio chamado metodologia. A metodologia é um conjunto de regras que nós seguimos ao analisar a nossa documentação e transformá-la em narrativa. Nós, historiadoras e historiadores que vivemos agora, fazemos a nossa pesquisa da seguinte forma:

Escolhemos um tema para pesquisar

Nossos temas normalmente derivam das nossas curiosidades sobre o passado, questões do presente e expectativas para o futuro. Após escolher o que vamos estudar, partimos para a pesquisa de referências.

Buscamos referências

Ou seja, juntamos estudos publicados sobre aquele tema no lugar e tempo no qual vamos pesquisar (e em outros lugares). Também lemos textos científicos de áreas correlatas. Vou usar a minha pesquisa como exemplo. Eu estudo as viúvas, temas correlatos seriam história da família e história das mulheres. Além de outras áreas do conhecimento. No meu caso específico, eu leio muita antropologia e teoria crítica.

Formulamos uma pergunta

O que queremos descobrir sobre aquilo? Com a pergunta formulada, vamos atrás de documentos nos quais possamos pesquisar sobre o assunto. Me chamem de neopositivista o quanto quiserem, mas, para mim, a narrativa histórica tem que ser baseada nas fontes. Eu só digo que “as viúvas eram chefes de família no século XIX” porque as minhas fontes disseram que foi assim.

Analisamos a documentação

As fontes são os documentos depois de serem questionados pela pesquisa histórica. Os documentos podem ser desde legislação da época, literatura, cinema, jornais, revistas, rádio, tv, inventários, testamentos, processos judiciais, relatos de viajantes, entrevistas orais, livros de batismo, fotografias, pinturas, selos… As pesquisas históricas normalmente usam vários documentos de tipos diferentes ou muitos documentos de um tipo só. Por exemplo, pode ser feita a análise de 500 processos judiciais para se tirar uma conclusão. Ou pode se cruzar a informação publicada nos jornais com inventários, processos judiciais e legislação para se analisar um acontecimento.

O conhecimento histórico, então, é feito baseado na documentação transformada em fonte histórica. O conhecimento histórico não é baseado em achismo, nem é baseado em vídeos do youtube ou em correntes de grupos do whatsapp. Essas novas mídias podem (e devem) ser usadas como documentos para se entender a época na qual estão inseridas (a atual, no caso), mas devem ser analisadas por meio de uma metodologia adequada ao conhecimento histórico.

E porque usamos vários tipos de documentos diferentes com metodologias diversas para se ter alguma conclusão? Porque só podemos afirmar que algo aconteceu em um passado que não vivemos se tivermos evidências. Isto acontece com todas as ciências, não se enganem. Não se pode sair por aí dizendo algo que você não tem evidências de que aconteceu. A nós, historiadoras e historiadores, cabe a análise e interpretação das evidências.

Escrevemos os resultados

Interpretação não é invenção, nem achismo. Imagina: quando eu leio um inventário do século XIX, interpreto-o junto com várias informações que eu já tenho sobre a época porque sou uma especialista no assunto. É muito diferente de alguém que nunca leu um inventário na vida ler ou até de uma jurista contemporânea pegar para ler. É a mesma coisa de um médico ler um raio-x ou de eu pegar um raio-x para ler. Eu tenho conhecimentos de paleografia e do século XIX no Brasil para interpretar o inventário, mas não sei, cientificamente, interpretar um raio-x, porque eu não fiz uma graduação, mestrado e doutorado para aquilo, fiz para desenvolver minhas habilidades de entender a sociedade do século XIX.

Então, a história é produzida com documentos, método, muita muita muita leitura, além de habilitação para isso.

Existem várias interpretações acerca de um mesmo fato histórico, mas o fato aconteceu e está lá, existem evidências e pesquisas afirmando isso.

No dia 31 de março de 1964, houve um golpe militar no Brasil.

Isto não é nenhum achismo. Existia um presidente, ele chamava-se João Goulart, ele foi eleito. Eleito significa: houve eleições, as pessoas foram as urnas votar e por isso ele era o presidente do Brasil. Então, as Forças Armadas destituíram o presidente eleito do poder e instituíram uma outra pessoa para ser presidente do Brasil, sem terem novas eleições. Isso se chama golpe de estado. O golpe de estado é quando alguma instituição, podem ser as Forças Armadas ou a igreja, entre outras, derrubam quem está no poder para se colocar como chefe do estado-nacional, sem consultar o povo. Essa parte de consultar o povo eu só estou falando porque no Brasil havia uma democracia.

A partir deste fato histórico: o golpe de estado dado pelas Forças Armadas em 1964, o país saiu de um regime democrático para um regime de ditadura. Ditadura é quando uma série de direitos das pessoas param de existir. As pessoas não tem direito político, ou seja, o povo não vota para os próprios representantes, nem pode se eleger. Entre os mais famosos cortes de direito da Ditadura Civil-Militar brasileira esteve a censura aos meios de comunicação e das artes e a perda de direitos trabalhistas. Também houveram torturas, perseguições e mortes das pessoas contrárias ao regime. Isso também caracteriza regimes ditatoriais. Existem pesquisas históricas sérias demonstrando tudo isso, além de livros escritos por pessoas que sobreviveram a tortura e relatos orais também. Ou seja, essas pesquisas são baseadas em documentação e método, realizadas por historiadoras e historiadores competentes, renomadas/os nacional e internacionalmente, como Daniel Aarão Reis, Samantha Viz Quadrat, Rodrigo Patto Sá, Heloisa Starling, entre outras.

Gustavo Berocan Veiga “ABC da Ditadura” / ilustração

Escrevi este texto porque em tempos de terraplanismo, eu não vou ver meus colegas passando anos dedicados a pesquisa, eu mesma passar meses intermináveis nos arquivos, noites longas lendo minha documentação e fazendo banco de dados, escrevendo artigos, participando de congressos, para vir alguém dizer que meu trabalho e dos meu colegas é achismo. Desqualificar a pesquisa científica dizendo que é um achismo é desinformação e desonestidade.

Carolina Braga é bacharela em História pela UFPE, mestra em História Social pela UFF e doutoranda em História Contemporânea na Universidade de Coimbra.

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