Pretinha

täkwila
Revista Subjetiva
Published in
4 min readSep 14, 2020
Fonte: Pinterest

Meu erro foi grave, eu sei. Sempre pensei em mim como um homem de princípios. Abaixo deles havendo meus parâmetros, estes que se alteram, se intensificam, se abrandam e até se descartam ao longo dos anos. Mas meus princípios, eles permanecem.

Não me considero um homem de muitos princípios, mas de poucos e sólidos. Hoje, percebo ter quebrado um deles, tendo eu me retirado antes de possivelmente quebrar um segundo.

Sabe, eu não fui sempre assim. Quem me olha hoje não enxerga, por trás do elmo e do escudo, o corpo franzino de mente frágil que fui há não tanto tempo atrás. Por coincidência, estes dias havia parado um pouco à sombra da estrada para, como dizem, cheirar as rosas. Olhar um instante para a direção de onde vinham meus passos. Observei as pegadas. Suas formas quase que totalmente iguais não fosse uma perceptível e gradativa sulcagem maior da terra conforme o avanço da caminhada.

Pude avistar de longe o moleque franzino, inseguro, com medo de tudo, inclusive de si mesmo. Para aquele garoto a ideia de se impôr ou se fazer ouvir ou ser visto era um imenso pesadelo. Preservo a habilidade da profunda observância desse pequeno menino, pois este via tudo em silêncio, traçando e tecendo ideias mirabolantes que, assim como hoje, não encontravam em sua época acoplagem no que havia de real em volta.

Percebi o quão longe havia chegado. Que em muito — enfático muito — realizei grande parte dos anseios daquele garoto. Que havia me tornado e estou me tornando um bom homem aos olhos de um eu mais puro. Não posso negar que fiquei feliz com o achado. E então a súbita derribada.

Não posso ser cínico nos dias de hoje. Perdi o talento. Não posso dizer que não vi o momento do impacto chegando. Assim como não posso dizer que não o senti. O caso é que depois de um certo número de golpes você aprende que evitar contrair e tensionar faz você se ferir menos. E com um certo número de anos você também entende que levar algumas no queixo é coisa inevitável. Não é frieza, é calejamento.

Posso dizer com convicção que te queria na minha vida. Assim como posso dizer com certeza não ser isso necessidade. Ao contrário de crença popular, o que há de mais saudável em querer o bem de alguém é não aprisionar essa pessoa nos limites da sua companhia e vontade. É saber entender um adeus. Infelizmente, devido às circunstâncias, esse adeus soou mais como um que a porta bata onde o sol não bate. Em dado tempo a poeira assenta. Apesar do bom escultor dar forma através de batidas suaves, o mau escultor também deixa sua marca.

Como todo acidente, nosso erro foi mútuo. Devido ao preparo, o choque não foi tão danificante quanto poderia ter sido, mas ainda assim, como em todo pós-trauma, não cabe classificar quem fez falta de maior influência no sucedido. Melhor é pensar na boa viagem que se fazia. Lembrar da afeição pelo horizonte à frente. Dos planos para quando chegasse. De como foi bom ter saído de casa depois de tanto tempo. É preciso agradecer com sinceridade por isso. Você me deu bons amanhãs enquanto encostava a cabeça no travesseiro pensando em quando o dia seguinte aparecesse. Isso não me ocorria há tanto tempo. Meus dias são como ruídos sonoros percebidos em pronta deflagração. Aqui estão, para não mais. O que se ouve se entende, o que foi ouvido se esquece. Foi bom ter olhado por trás da fresta da porta por um pouco, ainda que pouco, ainda que muito pouco.

Pensando com profundeza, foi talvez incrível.

O que acontece é que meu passado foi caudaloso em excesso. Quando se atravessa a fúria do mar da maneira que fiz e finalmente se atinge a enseada, a última coisa que se procura é enfrentar a tempestade novamente. Eu não preciso e não quero mais testar a minha fé, ela está aqui. E apesar de você ter me mostrado que é possível o sossego, tive de partir no sinal de sobeja, nas nuvens obscuras, no trovão próximo, pois até lago é traiçoeiro quando o tempo vira. Como disse, pressenti o impacto, chequei a meteorologia. Só que não tenho mais guarda-chuva. Foi saqueado pelo mar.

Lhe desejo sorte, o que é mais do que desejo a muitos, a eles só desejo algum mérito. Gostaria que as coisas tivessem terminado de forma diferente, inclusive no previsto fim. Eu tomei o que me foi dado, e não creio que eu algum dia me torne capaz de virar a outra face para qualquer pessoa. Foi o mal que contraí no território que me foi imposto, e por aqui não é moléstia, por aqui é atributo. Meu escudo e elmo são utilizados à frente, pois não sou mais apto a retroceder de nada. Especialmente de qualquer investida. Até meu amado pai tem ciência disso. É um de meus princípios.

Meu erro fatal foi esse de me vulnerabilizar demais. De não manter minha guarda, de não me conter em meus limites. Foi como um golpe ao ponto fraco, exceto que desta vez estava nu. Eu não creio que você tenha entendido bem quando disse que lhe mostrava um lado que à maioria esmagadora das pessoas nunca foi e nunca será apresentado. Em dia que não pude evitar estar menos exposto, mais voltado ao meu estado naturalizado, me perguntou se me havia acontecido algo. Lhe faltou referencial. O que me faltou foi sobriedade. Se te faltaram palavras e sinais, em mim sobrou exagero. Entretanto, não posso lhe pedir desculpas por dar o que tive conforto para oferecer. É isso que torna o fim tão pontual, tão acertado.

Obrigado pelo tempo, atenção e carinho devotos, sei que foram com verdade. Espero que tenha retribuído com alguma competência. Não guardo rancor de ti, só da situação derradeira e de cisão irreparável. Não tenho nada além de apreço por ti, e sou sincero quando digo isto. Obrigado.

Seja muito feliz, venerável dama.

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