Protagonista X

Um ensaio sobre a construção de personagens em Logan

Bruno Tavares
Revista Subjetiva
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5 min readMar 6, 2018

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Old Man Logan / Foto: Divulgação

O cinema atual vive a era dos heróis. Anualmente as telonas se enchem de efeitos, lutas coreografadas e batalhas do bem contra o mal em pelo menos cinco filmes diferentes. Do universo compartilhado da Marvel aos longas da trindade DC, todas as produções do gênero têm um precursor em comum. Essa peça primordial, que trouxe de vez as hq’s para Hollywood, é o filme dos X-Men, lançado em 2000 e dirigido por Bryan Singer. Mesmo longe da perfeição, o longa é reconhecido por ser o pontapé inicial das aventuras de heróis no cinema moderno.

Quase duas décadas depois, os mutantes ainda estão vivos no imaginário popular. Dentre todas as produções do gênero, uma estória dos x-men voltou a se destacar, desta vez por ser listada na 90a­ edição do Oscar. Em Logan, vemos um futuro onde os x-men foram praticamente erradicados. Nesse cenário, um Wolverine (Hugh Jackman) velho e doente vive sua última aventura ao lado do senil Professor Xavier (Patrick Stewart) e de Laura (Dafne Keen), uma criança mutante criada em laboratório.

Mesmo com uma participação tímida na premiação — o longa foi indicado apenas por roteiro adaptado — vale a pena analisarmos a obra mais atentamente. Dentre suas várias qualidades, Logan se destaca por uma construção de personagem exemplar. O comportamento de Wolverine segue à risca todas as regras que regem a elaboração da personalidade de um protagonista.

X-21 e Logan / Foto: Divulgação

O Arco do Personagem

Tendo como base os conceitos de Robert Mckee, em um filme interessante o personagem deve viver situações diversas que gerem mudanças em seu interior, sejam elas boas ou ruins. Para isso a estória deve caracterizar seu protagonista. Na obra em questão, temos um Logan descrente, adoentado e sorumbático. Após ter vivido tantas aventuras ao lado de seus companheiros, ele foi testemunha da morte de todos, bem como do extermínio de sua raça.

Este Logan perdeu seu heroísmo e recusa ajuda àqueles que precisam dele, como faz diversas vezes com Gabriela (Elizabeth Rodrigues). Entretanto, seu coração continua primordialmente bom. Essa característica revela-se quando o mutante decide atender ao chamado da enfermeira e ajudar a pequena Laura a chegar à fronteira com o Canadá. Neste momento estamos diante de uma contradição onde a forma como o personagem age vai de encontro a suas características externas. O Wolverine egoísta e abatido ainda é capaz de se compadecer com inocentes, mesmo que a contragosto.

Gradativamente a narrativa exerce pressões sobre Logan que o fazem tomar decisões cada vez mais difíceis. Por sofrer de uma doença degenerativa, seu corpo agora é incapaz de se curar com a mesma rapidez de antes. Em meio a dores crônicas, ele é obrigado a lutar com diversos inimigos. Entre eles a nêmesis X-24: um clone seu criado em laboratório e repleto de ódio. Por fim, mesmo atormentado pela morte de Xavier e de uma família de inocentes, o personagem se vê obrigado a levar Laura até a fronteira.

Logan em batalha contra o X-24 / Foto: Divulgação

A tarefa é cumprida, mesmo Logan estando em condições críticas. Em seu destino final, a dupla encontra outros jovens mutantes, companheiros de cárcere de Laura. No local, Logan é tratado pelas crianças com um soro, porém rechaça tal abordagem ao saber que este é o mesmo princípio que ativa o X-24. No clímax da estória, Wolverine abraça sua doença e injeta uma dose cavalar da substância em questão para salvar os pequenos. Esta última decisão muda profundamente sua personalidade e, por alguns momentos, o faz sentir-se jovem. Com a propulsão momentânea ele consegue derrotar os algozes, mesmo que isto custe sua vida. Diante do túmulo do x-men, o público vê que o objetivo inicial foi cumprido: Laura e seus amigos chegaram à segurança e o herói realizou seu arco de mudanças com louvor.

A revelação do verdadeiro personagem, bem como o o contraste com a caracterização inicial é fundamental para uma boa estória. Isso mostra que o roteirista se debruçou sobre o texto e fez escolhas assertivas para gerar a identificação do público. Afinal, muitas vezes as pessoas não são quem aparentam ser. Via de regra, essa mudança é sempre necessária. Personagens que não apresentam tais diferenças existem, mas são superficiais e, por consequência, chatos.

If it’s purple someone’s gonna die / Foto: Divulgação

Protagonista X

Como parte do trabalho de conexão do público com o filme, Hollywood costuma inserir em suas produções modelos a serem seguidos. Em Logan não é diferente. Como protagonista ele possui todas as qualidades da cartilha: é voluntarioso, autocontraditório, obstinado, convincente em suas batalhas e empático, mesmo que nem sempre seja simpático. Como resultado, a audiência sai do cinema acreditando nos dilemas vividos por ele e endossando suas escolhas. Ao ver um bom protagonista o público torce por ele, acredita em suas decisões e vai para casa certo de que faria o mesmo, se por acaso vivesse alguma situação semelhante.

A Herança Final

Do além-túmulo, Wolverine nos envia uma mensagem importante. Subestimados por uns e superestimados por tantos outros, os filmes de heróis podem sim ser elevados ao status de cult. Para isso, as produções devem fazer como Logan: se dedicarem à originalidade verdadeira e à arte da escrita, priorizando o roteiro em detrimento da ação psicodélica. Seguindo essa fórmula não será nenhuma surpresa se, daqui a alguns anos, títulos do gênero concorrerem e até ganharem um Oscar em categorias mais importantes. Por tantas lições aprendidas, desejo longa vida aos mutantes e longa vida aos heróis.

Laura e Logan / Foto: Divulgação

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Bruno Tavares
Revista Subjetiva

Um publicitário que adora viajar, seja nos livros, nos filmes ou na vida real