Psicose: o livro, o filme, a série
Se uma história é boa, será contada de todas as formas possíveis
Psicose não foi o livro de estreia de Robert Bloch. Para chegar até ele, o premiado escritor norte-americano experimentou por anos a temática sobrenatural em histórias curtas, crônicas e romances. Escritor por vocação, foi em uma máquina de escrever usada que iniciou seus rascunhos e aos 19 anos conseguiu vender seu primeiro conto para uma revista. A partir daí, não parou mais.
Anos depois daquele primeiro conto vendido, sentindo já ter esgotado o gênero do sobrenatural, Bloch resolveu investir no terror/suspense. Foi assim que nasceu Psicose. Publicado em 1959, o livro não foi um sucesso imediato, mas encontrou seu destino ao rapidamente cair nas graças de Alfred Hitchcock através da sugestão de uma assistente do diretor.
Hitchcock queria filmar Psicose, mas o estúdio para quem ele trabalhava, não. A Paramount não queria mais um filme de suspense. O diretor ofereceu um prazo rápido de gravação e filmagem em preto e branco, visando diminuir os custos e convencê-los. Nem assim o estúdio quis. A solução foi bancar o investimento do próprio bolso, cabendo à Paramount apenas a distribuição. Funcionou, mas acabou que a má vontade do estúdio azedou a relação e esse foi o último filme dessa parceria.
Azar o deles, lógico. Psicose inicialmente recebeu críticas desencontradas entre euforia e rejeição, que logo convergiram para o positivo em razão da excelente bilheteria conquistada. Essa reconsideração dos críticos rendeu ao filme quatro indicações ao Oscar, incluindo Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Diretor. Hoje, ele é considerado um dos melhores de Hitchcock e tido como uma obra de arte cinematográfica por críticos e estudiosos da área.
Bloch tinha 42 anos quando escreveu o livro que o tornaria imortal.
Hitchcock tinha 60 e já era imortal desde o nascimento, como sabemos. Esperto como ele só, gravação confirmada, comprou anonimamente todos os exemplares de Psicose em circulação para garantir que ninguém soubesse o final da história até assistir ao filme.
Se o final ninguém podia saber, o enredo instigava a curiosidade por si só. A sinistra história de Marion Crane, que foge após roubar os 40 mil dólares que foram confiados a ela depositar num banco. Errando pela estrada com uma mala cheia de dinheiro roubado, acaba parando no Bates Motel, cujo proprietário é Norman Bates, um homem atormentado por sua mãe controladora. E aí, você sabe, as coisas começam a dar errado…
Homens atormentados psicologicamente não eram novidade no cinema ou na literatura, mas não desse jeito. De alguma forma, Bloch conseguiu trazer à tona tudo o que as pessoas morbidamente queriam ler ao basear, ainda que apenas vagamente, o personagem de Norman Bates em Ed Gein, o famoso lunático que matava, profanava túmulos e fazia abajures, máscaras e até vestes inteiras com a pele de suas vítimas. Verdade seja dita, Ed Gein seria mais propriamente retratado em seu modus operandi em O Silêncio dos Inocentes (1988 o livro, 1991 o filme). A Robert Bloch coube trabalhar o lado psicológico do criminoso. O que une Norman Bates e Ed Gein é que ambos eram assassinos solitários em locais isolados, com mães dominadoras já falecidas que isolavam os filhos do mundo lá fora e os vestiam com roupas femininas.
Pesado.
É na relação doentia de mãe e filho que a obra de Robert Bloch se foca, mais do que nos crimes. No livro, entre detalhes sutis e dolorosos dessa relação sendo entregues de forma corriqueira, somos jogados nos delírios medrosos de Norman e aos poucos levados a desconfiar do pior: a mãe não existe, a mãe está morta. Quem está fazendo tudo é o filho. Ao contrário do que se espera, o livro assusta pela profundidade do drama e não pelas passagens violentas, que são rápidas e permanecem em segundo plano. Ainda assim, em suas enxutas 175 páginas temos tempo de nos horrorizar: no livro, Marion Crane é decapitada no banho.
Do filme, o que marcou foi a icônica cena do chuveiro. Janet Leigh é Marion Crane, aterrorizada, aos berros, sendo golpeada até a morte por uma faca que nunca para e quase não se vê. O sangue cinematográfico era calda de chocolate e antes da tomada ser gravada, Hitchcock fez vários testes com a atriz para saber quão alto ela era capaz de gritar. Você vê que ela podia gritar muito alto. A gravação dessa cena durou uma semana e mudou a forma como avaliaríamos um filme de suspense para considerá-lo bom. Em Psicose a atmosfera, a trilha sonora e o clima pesam e angustiam muito mais do que qualquer violência explicitada. O que não é visto assusta mais do que o que aparece na tela.
Depois do filme, foram feitas ainda quatro continuações livremente inspiradas nos livros que Bloch escreveria a seguir, uma mais duvidosa que a outra e nenhuma dirigida por Hitchcock. Como boa história que nunca se esgota, Psicose teve direito até a uma releitura extremamente vergonhosa e hedionda pelas mãos de Gus Van Sant em 1998. Nessa versão, Norman Bates foi interpretado por Vince Vaugh, um dos poucos atores que só consegue 100% de sucesso se a missão for fracassar.
E então, silêncio.
Entre tentativas ruins de continuações e releituras terríveis, Psicose veio tropeçando em erros que manchavam sua memória até 2013, quando surgiu Bates Motel. Buscando aprofundar ainda mais a questão psicológica dos personagens principais, e com a presença luxuosa de Freddie Higmore e Vera Farmiga ancorando o elenco, a série é um “prólogo contemporâneo” para o filme de 1960.
Se no livro Norman Bates era um gorducho esquisitão de 40 anos e no filme era um tipo até charmoso beirando os 30, em Bates Motel vamos ainda mais longe e conhecemos o Norman de 17 anos de idade, enfrentando todos os conflitos da adolescência e ainda tendo que lidar com o choque da morte do pai e a mudança de casa com a mãe. A série começa depois da morte do marido de Norma, quando ela compra um motel de beira de estrada para que ela e o filho possam começar uma nova vida deixando para trás os traumas e o passado recente doloroso.
É claro que trazer um personagem tão complexo como Norman Bates para uma fase tão delicada como a adolescência poderia gerar desconfianças quanto à profundidade da trama que se criaria, mas incrivelmente funciona. Você pode creditar isso ao cuidado da A&E (quem diria!), ao talento absurdo e subestimado (por vocês!) de Higmore ou ao pulso firme e inquestionável carisma de Farmiga. O caso é que funciona demais.
A série começou em 2013 e se encerrou esse ano, em 2017. Foram cinco temporadas calculadas cirurgicamente para abranger por completo a história da família Bates: do nascimento da loucura que lentamente os engolfou, passando pelo famigerado acontecimento com Marion Crane e encerrando com o que aconteceu depois. E mesmo que no livro e no filme você possa erguer seu dedo indicador direito e bradar que Norman é um sádico sem-vergonha, na série você vê que não é bem assim…
Norman é um psicopata, isso não se discute, mas em Bates Motel temos pela primeira vez um olhar aprofundado sobre o que o tornou essa pessoa tão horrível. E o grande presente da série é que ela mostra esses acontecimentos e deixa para o público pensar como deve encará-los. Não há julgamentos. Não existe verdade absoluta. Existe um homem que desde a infância foi soterrado pela presença esmagadora da mãe super-protetora e transtornada. E existe a mãe que passou por uma vida extremamente difícil que moldou quem ela era e o modo como lidava com o filho. Conhecemos a fundo esse homem e essa mulher, choramos e nos angustiamos com eles. Torcemos por eles. E, acima de tudo, por mais improvável que seja, nos apaixonamos por eles.
Como bom tributo bem-feito que é, a série presta diversas homenagens ao filme em várias referências, algumas sutis, outras nem tanto. Apesar de se passar nos dias atuais, o cenário e muitos traços dos personagens carregam uma aura dos anos 60. As roupas de Norma são todas nesse estilo retrô. Norman gosta de ouvir música em discos de vinil em casa, mas também usa um iPod quando sai para a rua. O maior exemplo desse jogo entre moderno e antigo, quem sabe, foi a escolha de Rihanna como Marion Crane, em um choque de realidade que, longe de quebrar o clima, só traz mais identificação e nos aproxima ainda mais da trama.
Só para vocês saberem, Rihanna conseguiu o papel ao se declarar fã da série em seu perfil no Twitter. Mais moderno que isso, desconheço.
Robert Bloch morreu em 1994, aos 77 anos. Em vida, teve seu talento reconhecido diversas vezes, tendo recebido um Prêmio Hugo, um Bram Stoker Award e um World Fantasy Award. Chegou a ser presidente de 1970 a 1971 da Mistery Writers of America e foi membro da Science Fiction and Fantasy Writers of America. É curioso pensar em como com uma “simples” história ele criou um universo que perdura e se reinventa até hoje. Se a história é boa, ela será contada de todas as formas possíveis. Não sei se Bloch imaginava isso ou se era esse seu sonho — eu particularmente ficaria para morrer de felicidade se Vera Farmiga interpretasse um personagem meu — , mas não duvido que tenha sido.
Eu sei, o sucesso não pode ser medido por uma série de TV (e muito menos por um filme com o Vince Vaugh), mas você me entendeu. Aos 42 anos, Robert Bloch alcançou a imortalidade e seus personagens, assustadores e demasiado humanos, permanecem entre nós até hoje para nos lembrar que para fazer surgir uma boa história é preciso apenas uma boa inspiração e alguma persistência. E uma boa dose de loucura, é claro.