QUAL LUGAR DE FALA DO JORNALISTA?

Entre dificuldades da profissão e atentados contra a liberdade de imprensa, o debate sobre a importância do jornalismo na luta antirracista

Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva
6 min readJun 25, 2020

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Ano após ano, a cada novo ranking, jornalismo segue na disputa entre as profissões mais estressantes. Os cursos seguem envoltos por uma atmosfera negativa de baixos salários, desemprego e uma carga horária que parece nunca ter fim. Afinal, jornalista nunca se desliga, um ser e estar constante capaz de roubar toda a sanidade, e apaixonar alguém na mesma medida.

Deixando de lado os floreios, o fazer jornalístico sempre teve lugar de destaque na construção social, isso desde que surgiu e foi se estruturando para chegar nas muitas formas que conhecemos hoje. A imprensa tem um papel social importantíssimo, muito além de fazer a curadoria dos acontecimentos cotidianos, estar a serviço da sociedade tem que ser o norte número 1 desses profissionais. Não é fácil entender os meandros da linha editorial de cada veículo, tampouco saber que não é preciso estar em algum deles para fazer jornalismo. É um aprendizado diário e uma adequação também, pois as engrenagens mudam a cada centímetro geracional.

Nos últimos tempos, muitos têm reiterado a importância da imprensa em momentos de crise como a da pandemia do novo coronavírus. Sabendo que o sistema capitalista é cíclico e crises fazem parte da sua manutenção, em que momento foi o jornalismo menos importante? A perspectiva muda por causa das investidas contra essa liberdade que tanto prezamos, que causam em outros agentes uma valorização mais contundente dela.

Há mudança nos dois lados do pólo que conhecemos hoje como lógica política. Sejam os neofascistas atentando, diuturnamente, contra qualquer posição informacional que elucide seus constantes erros, sejam os fortalecedores da democracia reiterando a importância de um exercício de jornalismo frenético e comprometido, para dar conta dos bombardeios noticiosos que não cabem em 24h.

Na mesma linha, esse ano não caberá em doze meses, como de costume. 2020 nem chegou a metade e o dossiê de acontecimentos se estende tirando todo nosso fôlego. Acordar tem sido tarefa árdua, é sinônimo de descobrir mais um infortúnio vindo de um desgoverno focado em estilhaçar o projeto de país que já se teve.

Entre um turbilhão de fatos, um dos principais é que não existe democracia plena sem liberdade de imprensa, sem que os jornalistas possam exercer sua vigilância em prol de uma comunidade informada e ciente dos aspectos que a cercam. Isso torna compreensível a necessidade que líderes políticos autoritários e seus apoiadores têm de tentar calar as vozes da imprensa, na mesma medida que espalham desinformação em proporções catastróficas. Um povo narcotizado pela pulverização de mentiras, e até mesmo de verdades descontextualizadas, precisa de um porto seguro informacional a quem possa recorrer.

De quais vozes estamos falando?

O resultado da equação não é tão simples quanto parece. A mídia, enquanto instituição que compõe o campo social não está isenta de interesses políticos e econômicos. Podemos enxergar um teor genérico ao citar mídia, jornalismo e imprensa como uma coisa só. Na realidade, deveríamos discutir sobre os jornalismoS capazes de operar em meio ao caos de uma esteira capitalista.

O que vem primeiro à nossa mente são os grandes conglomerados de mídia, detentores de diversos veículos com uma estrutura pronta para ditar os principais debates de um país. Nadando contra essa corrente tradicionalista, muitas iniciativas de jornalismo independente se dispõem a ir além, através de projetos que estabelecem recortes de cobertura, a sensibilidade e o olhar através de algumas realidades que, por vezes, somem das maiores redações, surgem nesse novo espaço.

Um desses projetos teve início em 2005, mas só teria ampla projeção cinco anos depois. O jornal Voz das Comunidades, criado pelo ativista René Silva, visava contar o dia a dia e as dificuldades dos moradores do Morro do Adeus, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Com edição impressa e digital, a intenção é mostrar a realidade das favelas a partir das perspectiva de quem a vive, relatando as injustiças, a resistência e a diversidade que fervilha de lá, de vidas que também fortalecem a cultura e economia da cidade. No contexto da pandemia, o jornal tem se dedicado a acompanhar o avanço do coronavírus nas comunidades, fazendo a curadoria dos dados e auxiliando os moradores com os cuidados.

Foto de capa de “O som da guerra”, experimento social do Voz das Comunidades que contava como é viver no Complexo do Alemão. (Imagem: Divulgação)

E qual seria a distância de propostas assim para o jornalismo tradicional que infesta nossas TVs? A sensibilidade supracitada não pode ser muleta para matérias especiais quando se busca tocar o telespectador. Na Era da espetacularização, o olhar parece estar atento apenas ao atípico, ao que choca e rende muitos clicks. A reinvenção do jornalismo é mais sobre voltar às origens da contação de histórias ora simples, ora grandiosas, perpassando os extremos de uma sociedade que alimenta a pauta e é alimentada por elas.

Um jornalismo antirracista é possível?

Durante a quarentena, já enterramos mais vidas do que se pode contar. Elas não se foram apenas de Covid-19, é que a política de fazer morrer e deixar viver do Estado não dá trégua por causa de um vírus, e existem dores que o distanciamento social não afastam. Perdemos George Floyd, João Pedro, Miguel e Guilherme. Nomes que devem se juntar a tantos outros dos quais nem temos conhecimento, uma coletânea de adeus que damos graças a uma das mais cruéis estruturas da sociedade, o racismo.

Jovens ocupam as ruas em protestos as mortes de pessoas negras pela polícia. (Foto: Lais Dantas)

Manifestações antirracistas incendiaram, em tons literais, diversos países do mundo. Vimos a importância das vidas negras ocuparem os tabloides com uma força não vista há tempos. O pesar de momentos assim é que, além das perdas dos nossos, percebemos a ausência dos muitos de nós em manchetes que falem sobre vida, sobre felicidade e talentos. Lembrar do povo negro em duas datas perdidas no ano e nas páginas policiais é uma das maiores dívidas que o jornalismo tradicional tem com o país.

Mas não é de se surpreender, afinal, como contar histórias que humanizem pessoas negras partindo de redações extremamente brancas? Se o olhar de privilégio da produção branca não paira sobre uma população majoritariamente negra, no caso do Brasil, de onde surgiriam pautas inclusivas? E assim, os especialistas convidados para matérias serão, em sua maioria, homens brancos. Foi surpreendente o recorte racial das vítimas de violência policial esse ano, pois em todos os anos anteriores esse apontamento não era feito.

Super presença de pessoas negras enquanto criminosas, ausência delas em posições de produção intelectual e impactos positivos na sociedade. Sem dizer nada o jornalismo disse por anos, demonstrou qual lugar da comunidade negra num país tão desigual, e não se preocupou em perfurar a bolha do racismo. Sendo assim, o diálogo não deve ser proposto apenas para observar que negros morrem mais e isso deve acabar, mas também para dispor a estética negra em todas as camadas sociais, inserindo-nos, inclusive, nessas redações que respiram tanta hegemonia. Para que assim possamos contar histórias de gente parecida conosco, que sobrevive há séculos na luta por espaço.

Não podemos negar que há uma infinidade de profissionais que pautam suas narrativas em volta da busca por justiça social. O jornalismo independente tem encontrado abrigo nos últimos anos, no centro de um caos político onde escondidos atrás de um discurso conservador, lideranças atentam contra direitos básicos enquanto defendem uma sociedade permeada por desigualdade. Há diversos jornalistas comprometidos com a verdade e com um futuro digno para todos, esses costumam ser os mais silenciados, mas seguem na linha de frente de uma guerra onde o alvo principal é a democracia.

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Ana Beatriz Rocha
Revista Subjetiva

Jornalista, escritora independente e em eterno flerte com a poesia. Cada fragmento estanca a ânsia por liberdade que há em meu peito.