Quando deus existe

Carolina Bataier
Revista Subjetiva
Published in
2 min readDec 19, 2018

Você falava da injustiça da espera. Talvez seja essa a prova maior da existência de deus, você dizia, fazer valer a espera de quem ainda não foi para o outro lado. Lembrei do meu avô, agora, sozinho. Os olhos dele se enchem de lágrimas toda vez que falamos de festas de família, de flores ou receitas.

Quanto à espera, ainda não sei, mas sinto a dor da ausência do agora. A cadeira vazia, uma casa com três, dez, trinta vezes mais espaço, a música no rádio.

Outro dia, eu falava do medo da morte. Não me assusta o fim, mas a percepção, diante dele, de não ter feito tudo que podia. Então, uma amiga notou: você não tem medo da morte, mas de não viver. Outro amigo disse que o contrário da vida não é a morte, mas a falta de movimento. É ditado chinês, ele explica.

Você reparou como o ar fica leve em dezembro? Outro dia, eu passeava no centro duma cidade velha e admirava uma moça na varanda, três andares acima da rua, numa noite quente. Ela tinha os cabelos soltos, cachos dançando sobre o rosto,uma taça na mão e o queixo do rapaz sobre o ombro. E, depois, outro dia também, era eu a moça na varanda, ou janela, numa noite quente, ouvindo o som dum violão. Talvez a felicidade não seja um estado contínuo ou uma explosão, mas uma estar-ser-encontrar, tudo fluindo juntinho, como se combinado, mas sem combinar.

Felicidade pode ser, por exemplo,

A noite em que eu fui

A moça que eu admirava.

E, para ser, aconteceu o encontro improvável. Que poderia não acontecer. Então, talvez, sim, seja injusta a espera por toda uma vida.

Mas há um tanto de justiça divina nos encontros.

Talvez, deus, ou o que convenientemente chamamos de deus,

Que pode ser também sorte

Ou felicidade,

não exista no depois

mas num improvável

e palpável

agora.

  • *

Carolina Bataier é autora do livro O pôr do sol dos astronautas, à venda no site da Editora Letramento.

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