Quando o feminismo vira moeda de troca
O feminismo nunca foi sobre escolhas, e sim sobre destruir as estruturas da desigualdade. Esta afirmação de Gail Dines, em um primeiro momento, parece equivocada. Apesar de não concordar com tudo que a professora diz, tendo em vista a vertente feminista de pensamento que ela segue, há muitos pontos interessantes para analisar em seu discurso.
Tal frase traz à reflexão a seguinte pergunta: “Qual o objetivo do feminismo?”.
Com ela, duas possíveis respostas: “A mulher ter o poder de escolha” ou “Destruir as estruturas da desigualdade”.
Esse questionamento se torna interessante justamente porque acreditar que a primeira resposta serve como objetivo do feminismo estamos nos enganando. A desigualdade de gênero é o obstáculo. Nunca foi sobre escolhas.
A finalidade do feminismo ser resumida ao poder de escolha da mulher seria manter todos os padrões machistas e construídos pelo patriarcado, pois não haveria uma busca em destruir estereótipos que oprimem as mulheres, e sim uma escolha entre eles. Ou seja, elas seriam impelidas a optar entre estereótipos existentes: entre ser puta ou santa; dona de casa ou a que trabalha fora; a culpada ou a vítima; a livre ou aprisionada. Que liberdade é essa onde os arquétipos são mantidos e onde a desigualdade não é combatida? Que tipo de movimento coletivo seria esse baseado em escolhas individuais?
Chegamos exatamente ao ápice do pensamento de Gail Dines sobre a sua afirmação: o surgimento de um feminismo deturpado e neoliberal, possuidor de uma visão totalmente individual, que celebra a livre escolha e o empoderamento. É a partir dessa perspectiva que podemos entrar na questão do “feminismo de mercado”.
Tal expressão traz a ideia do movimento sendo cooptado pelo Estado capitalista. Isto é, a apropriação das pautas feministas pelo mercado a fim de subvertê-las, e lucrar com isso. A luta do movimento feminista ameaça o capitalismo por ter como principal objetivo destruir as opressões que foram perpetuadas todos esses anos pelo mesmo, em vários âmbitos da vida da mulher: a imposição de um padrão de beleza inalcançável; a objetificação do corpo feminino; a moral hipócrita de uma classe dominante; a exploração das mulheres trabalhadoras, pobres e negras; e diversas outras formas de bombardeios. A tentativa de destruição de bases de exploração-dominação do capitalismo faria com que ele se enfraquecesse, restando então, enfraquecer o inimigo: o movimento feminista.
É claro que isso não ocorre somente na questão de gênero, como também, por exemplo, em relação à questão racial. É a estratégia do capital em se apropriar de movimentos de lutas e resistência, transformando seus símbolos em simples moeda de troca, mercadoria. Essa transformação os tornam inofensivos ao capitalismo, pois viram um nicho de mercado e consumo.
Temos a mídia como um dos principais expoentes dessa deturpação, responsável por veicular as reportagens e publicidades que subvertem a pauta feminista. As empresas, principalmente, adaptaram-se à essa nova demanda, visando aumentar seus lucros. O empoderamento e a sororidade são as peças fundamentais para esse movimento de mercado alçar êxito. Tentam passar que as mulheres devem ser empoderadas numa perspectiva diferente da feminista: fazendo uso de algumas marcas. E, que principalmente, devem ser unidas: independente se a sua patroa branca e rica te oprime e explora, e jamais abriria mão de seus privilégios.
Não há como negar que a lógica do capital está interessada estritamente em lucrar, vender sua marca, e não com a opressão das mulheres. Muito menos com a exploração que atinge as mulheres invisíveis.
Uma marca de cosméticos famosa trouxe famosas personalidades femininas negras do pop, a fim de alcançar aprovação e conseguir vender para esse novo nicho, enquanto mantém suas revendedoras numa espécie de “subemprego”. Outra marca famosa de cosméticos, esperta que é, já havia cooptado os homossexuais, colocando em seus comerciais diversos tipos de família e casais homoafetivos, agora promove um empoderamento à base de maquiagem e perfume para a mulher com o slogan: “Eu não preciso, mas eu quero”. Consegue perceber como transformam o feminismo numa simples escolha?
Está em alta artistas venderem o feminismo em entrevistas, programas… Nas novelas é até forçado e vergonhoso como enfiam esse feminismo vendido. Se você parar para observar, está em todo lugar. Assim como nas novelas, os filmes estão dando esse enfoque também para acompanhar a demanda. Até na política você pode perceber um discurso que alguns personagens nunca tiveram, mas agora trazem na tentativa de agradar.
Esse tipo de movimento não só traz lucro, mas também status. Um dos elementos mais importantes para viver numa sociedade capitalista. Nas faculdades, os movimentos de luta costumam ter bastante força e visibilidade. Percebendo isso, algumas pessoas começaram a se envolver porque perceberam que isso pode dar um status a ela. É bem fácil. Observa um discurso de um movimento, reproduz só para ser ovacionada, recebe aplausos: bingo! Vira uma atriz ou um ator, pois possui o pensamento capitalista. Porque quando não está fazendo seu teatro ou “militando” nas redes sociais para ganhar curtidas, não procura de verdade como lutar por aquela questão. Ainda pior são aqueles que só são militantes na frente do professor que apoia alguma causa, na tentativa de conseguir privilégios.
Termino esse texto enojada. Não com os movimentos sociais e muito menos com o feminismo. Enojada com essa cooptação do mercado e com essas pessoas que possuem essa lógica de concorrência e meritocracia implantada pelo capitalismo.
O objetivo do feminismo é destruir as estruturas da desigualdade. Após a leitura, podemos perceber que a liberdade numa sociedade de classes não é possível. Ou seja, os princípios estruturantes da sociedade devem ser combatidos: o patriarcado, o racismo e o capitalismo. Lutar pela liberdade da mulher é lutar contra a falsa liberdade que o capital traz e suas subversões. É lutar para trazer à tona as mulheres que não fazem parte desse mundo de escolhas e questões superficiais do “feminismo”.
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