Quarentena — 60º dia

Raquel Cerqueira
Revista Subjetiva
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2 min readMay 19, 2020
illustration: Kathrin Honesta

Um brisa entra no quarto.

Não tenho energia pra levantar e fechar a janela agora. Talvez seja melhor assim.

Vejo que já escureceu e não percebi. Passei as últimas duas horas pensando no que ia fazer depois enquanto não fazia nada.

Penso que os últimos dois meses poderiam se resumir nessas duas horas. Tanto planejamos, projetamos, especulamos sobre o que fazer quando tudo isso acabar. Enquanto isso, o tempo simplesmente passa.

Penso nessa expressão que resolveram adotar — o “novo normal” — e como me retorce o estômago. Procuro um sentido pra dar razão mas nada me faz acreditar que esses dias e o que mais vier pela frente tenham algo de normal.

Todas as listas, manuais de produtividade e textos de auto-ajuda que já foram gerados numa tentativa de amenizar a angústia de um mundo que interrompe seus planos. Faço muito esforço pra confiar que será uma época de transformação e que o planeta precisava de um “sacode”, como um alerta pra retornar aos seus devidos eixos.

Mas será que a transformação virá às custas de tanto sofrimento? Enquanto a classe média e os pensadores produzem e postam suas reflexões e projeções de um futuro mais aceitável, penso em outros tantos lutando apenas em escapar da doença, da pobreza e da dor de perder algum dos seus.

Sigo sem me movimentar da cama, rolo o feed do instagram e volto ao ciclo: reflexões, memes da quarentena, auto-retratos, belissimos pães caseiros, #tbt da cachu, da praia, de viagens inesquecíveis…

Deixo o celular de lado e finalmente vou até à janela. De novo a brisa vem.

E de repente, vem também as lágrimas.

Depois dessas duas horas de letargia processo então a notícia que recebi mais cedo: um amigo da época de adolescência falecera essa tarde.

Em poucos segundos, um rápido turbilhão de memórias me faz pensar na vida há quinze anos e no sorriso que ele estampava em todas essas lembranças. Sua principal característica.

Se foi. Assim.

Passo alguns momentos ainda janela, sinto o ar mais fresco e penso no delay da minha reação. Entendo que minhas emoções talvez não queiram também se adaptar a essa nova realidade.

Que está tudo bem não ter resposta pra tudo e acolher as lágrimas que chegam sem aviso. Assim como deixei aberto o espaço pra brisa entrar.

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Raquel Cerqueira
Revista Subjetiva

Comunicadora social. Especialista em Sociologia Política e Cultura. Desbravando e resgatando caminhos da escrita e de mim mesma.