“Quarto de Despejo” por Carolina Maria de Jesus: A Escrita de si como alívio do caos

Larissa Goya Pierry
Revista Subjetiva
Published in
5 min readMar 13, 2019
Fonte: Revista Prosa Verso e Arte

“…A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”. (p.143)

Carolina Maria de Jesus foi uma mulher negra que viveu na Favela do Canindé, na capital de São Paulo, mãe solteira de três filhos, trabalhando como catadora, ela tinha uma paixão por livros e por escrever sobre sua vida, o que ela era e o que ela poderia vir a ser. A partir disso, descoberta e auxiliada por um jornalista, Audálio Dantas (na época, repórter do jornal “Folha da Manhã”, hoje Folha de S. Paulo), Carolina escreveu e publicou, 1960, o livro “Quarto de Despejo” um diário autobiográfico não ficcional que retrata a sua vida nessa favela, do período de Julho de 1955 a Dezembro de 1959.

Nesse período, acompanhamos a sua rotina, suas fantasias, pequenas felicidades e angústias, além disso, ela nos apresenta uma leitura crítica das desigualdades sociais presentes na favela e do Brasil da época, cujo presidente, Juscelino Kubitscheck enfrentava um país à beira da crise (já assombrado pelo fantasma do DOPS) que, logo depois, levaria ao golpe militar de 1964. Tensões, descrença na possibilidade de mudança e a falência da figura do político são o pano de fundo para os eventos que se desenrolam na vida de Carolina.

Desde a primeira página já consigo sentir a voz autoral e singular de Carolina Maria de Jesus, inclusive ouvi-la, imaginando uma voz suave, mas firme, principalmente quando larga uma de suas muitas frases diretas e honestas, como quando ela diz no início da obra: “tenho apenas dois anos de grupo escolar mas procurei formar o meu caráter”. Sinto a resistência e a força — que todo dia se esgota, mas no próximo logo se renova — de Carolina emanando das páginas, seu “diário de uma favelada” foi escrito há meio século atrás mas parece tão atemporal. A visão crítica inesgotável que ela traz da realidade faz com que se destaque da ambientação da favela, conseguindo se perceber de fora, como uma observadora que também participa e testemunha a qualidade trágica da condição humana.

Consigo ler e imaginar ouvir sua voz mansa quando leio as palavras, que me transparecem pertencer a uma pessoa com muita resiliência, mas também sensibilidade. Conforme a descrição, em linguagem repetitiva, dia após dia, das rotinas de trabalho torturantes e repletas de privação vão ocupando espaço, a sensação do livro é de angústia, raiva, impotência. Por outro lado, é incrível como Carolina de vez em quando consegue encontrar uma centelha de ironia e humor em meio a esse pesado cotidiano, penso que isso é algo que acusa nossa humanidade, a capacidade de conseguir encontrar pontos de leveza em meio ao caos, caso contrário, tudo vai se tornando tão real e impossível de se escapar, e que a vida seja apenas isso, a realidade nua e crua, é praticamente insuportável. Há passagens geniais como:

“[…] Não fiquei revoltada com a observação do homem desconhecido referindo-se à minha sujeira. Creio que devo andar com um cartas nas costas:

SE ESTOU SUJA É PORQUE NÃO TENHO SABÃO” (p. 89)

“Como é pungente a condição da mulher sozinha sem um homem no lar”. Este trecho de um dos diários de Carolina revela o machismo que estrutura a vida na favela, bem como o racismo que permeia a vida dos moradores da favela que se aventuram pela cidade. A palavra “pungente” aparece bastante no decorrer de seu diário, segundo o dicionário, o que é pungente é aquilo “que tem a ponta rígida e aguçada, capaz de ferir, perfurando; pontiagudo”. Talvez seja exatamente a sensação que essa palavra transmite que Carolina queira demonstrar como se sente no seu dia a dia na favela do Canindé, não apenas precisa lidar com as privações fisiológicas diárias, carregando objetos muitas vezes pontiagudos e sentindo a dor física no seu trabalho como catadora, como também precisa lidar com os espinhos provocados pelas relações com seus vizinhos, potenciais amantes, vendedores, etc.

Um contexto no qual não existe sororidade, não existe possibilidade de florescimento de ideais de igualdade em um cenário tão dominado pela perversidade do sistema capitalista, racista e patriarcal que subjuga e inferioriza os morros, mas faz com que todos os dias, a maioria dos seus moradores tenha que descer até o espaço urbano em busca de uma ilusão de oportunidade. Lembra-me de um livro de não-ficção escrito por Virginia Woolf, chamado “Um Teto Todo Seu”, no qual a autora disserta longamente sobre as condições necessárias para que uma mulher que deseja escrever ficção prospere. Além disso, o livro desafia a ideia de que as mulheres, ao longo da história, não tenham sido capazes de escrever grandes obras da literatura, afinal, estavam elas minimamente em condições (materiais, educacionais, etc) parecidas com as dos grandes escritores?

Aqui está Carolina Maria de Jesus, contrariando todas essas teses, resiste. Resiste para escrever e, porque escreve, resiste! Não são poucas as admiráveis passagens do seu diário em que escreve sobre sua paixão por livros e por escrever, tendendo a fazê-lo, especialmente, quando está triste, frustrada com a realidade ao seu redor, usando as suas palavras não apenas como um escape da realidade concreta e pungente da favela, mas também como uma re-construção de si. Quando Carolina escreve, ela não é apenas a Carolina que cata papeis, a Carolina mãe de João José, José Carlos e Vera Eunice, não mais apenas uma das poucas mulheres na favela que, por escolha própria, não se casou.

Outros temas também são recorrentes no diário de Carolina, a difícil posição de ser uma mulher solteira e autônoma na favela, um ambiente extremamente machista, com papeis de gênero demarcados, no qual o homem é o provedor ou o abusador e as mulheres se encarregam das tarefas domésticas, das fofocas e de competir umas com as outras. Além disso, Carolina traz referências frequentes a religião, o quanto a experiência da fé religiosa não dá conta de explicar ou reconfortar as penúrias diárias. A única atividade que consegue tirá-la do estado de lamentação e do sofrimento é a escrita, como já falado, se não fosse pela escrita, Carolina dá a entender que abdicaria de sua singularidade e passaria a ser qualquer uma dentro daquele contexto que denomina de “quarto de despejo”.

Estamos acostumados a ler biografias e autobiografias de homens (quase sempre) ilustres, que de alguma forma “venceram” na vida — apesar de sempre ter pensado que essa expressão é injusta — e você se pergunta, e daí? Será que esses homens têm algo a nos oferecer que não sejam receitas e fórmulas genéricas sobre como atingir uma conta bancária de seis dígitos? Acredito que as palavras de Carolina venham de um lugar muito diferente, pois, a escrita de si produz efeito de purificação, de sabedoria, de transformação, é uma abertura para que o mundo possa nos enxergar de outra forma, uma outra chance que damos a nós mesmos, sonhando que talvez a realidade seja um pouco mais do que apenas aquilo que está visível e explícito perante nossos olhos. A arte é a única solução para o caos.

REFERÊNCIAS

Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. 1ª Edição. São Paulo: Editora Ática, 2014.

Woolf, Virginia. Um Teto Todo Seu. 1ª Edição. São Paulo, Editora Tordesilhas, 2014.

--

--

Larissa Goya Pierry
Revista Subjetiva

Psicóloga. Feminista. Escrevo umas coisas por aí. Apaixonada por Cinema, Literatura, Música e pelas belas estranhezas da vida.