Quem é o líder?

Carlos Barth
Revista Subjetiva
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3 min readApr 28, 2020
Imagem: reprodução internet

Final de tarde, estou na sala relendo O velho e o mar, de Hemingway, quando Angelina, 5 anos, se aproxima e pergunta:

— Paiê, posso fazer <coloque aqui qualquer coisa que os educadores falam que não é bom pra criança mas que, às vezes, você deixa só pra não parecer o pai mais chato do mundo>?

— Tá bom. Mas só um pouco!

Volto a me concentrar na leitura, agoniado pela luta de Santiago para fisgar o marlim-azul.

Apesar de ter o aval do pai, aos 5 anos de idade Angelina já sabe por experiência própria que é melhor confirmar com a mãe qualquer coisa que o pai autorize para evitar problemas futuros. Vai até o atelier onde a mãe costura e solicita autorização para fazer <coloque aqui qualquer coisa que os educadores falam que não é bom pra criança mas o pai autorizou só pra parecer um pai legal>.

— Claro que não! — é a resposta da mãe

Angelina, bufando, retorna à sala.

— Paiê, pedi pra mãe e ela disse que não pode.

— Então não pode, ué.

— Mas você disse que podia…

— Mas se a mãe falou que não pode, então não pode.

Angelina sai resmungando algo sobre falta de liberdade e ir embora de casa. Isso aos 5 anos de idade!

Retorna alguns minutos depois:

— Paiê!

— Que foi?

— Afinal, quem é o líder aqui em casa?

Acometido de súbita taquicardia, abandono a leitura bem na hora em que Santiago lutava com os tubarões para salvar o peixe. Temos aqui um problema bem mais sério, penso. Santiago e seu marlim-azul podem esperar.

— Veja bem, minha filha, aqui em casa a gente adota um regime democrático, cada um tem direito à sua opinião e…

— Eu sei, eu sei — atalha a menina, visivelmente descrente da democracia — Eu só quero saber quem é que manda aqui em casa.

Sinto que piso em campo minado. Um passo em falso e Bum!, minha reputação como chefe de família vai pro espaço. Como explicar para uma criança de 5 anos as complicadas relações de poder existentes em um relacionamento?

— Olha, filha, na verdade não existe um líder. A gente procura fazer tudo de comum acordo…

— Eu acho que um negócio desses não funciona direito!

— Que negócio?

— Isso, de não ter um líder. Tem que ter um que manda e um que obedece, senão não dá certo!

Na lata. Como lidar com a sinceridade de uma criança? Só abandonando a diplomacia e a democracia e apelando pra velha e segura autoridade paterna.

— Então é assim? Então eu mando e você obedece. Vai pro seu quarto que eu sou seu pai e você está de castigo!

Angelina sai resmungando algo sobre não ser minha filha legítima, mas ter vindo de um centro de “adotação”, além de reiterar suas ameaças de ir morar sozinha… 5 anos! Imaginem quando essa menina estiver na adolescência!

Abandono a leitura e me pego olhando o horizonte. Imagino estar em uma jangada em alto mar lutando com tubarões para proteger um marlim-azul gigante fisgado após dias e noites de luta ininterrupta. Seria mais fácil do que lidar com Angelina aos 5 anos.

Obs: crônica originalmente publicada na Revista Subversa — Vol.12 , n 4:

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Carlos Barth
Revista Subjetiva

Aspirante a escritor, karateca dedicado e budista relapso.