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Questão de tempo

Rafael Barbosa
3 min readMay 15, 2024

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Era o primeiro dia de carnaval.

Sete milhões de pessoas de todos os cantos do país e centenas de blocos espalhados por todos os bairros. Na cidade que é famosa por todo mundo se conhecer, ele sabia que era questão de tempo.

A namorada veio de outro estado para conhecer o carnaval que ficou famoso nos últimos anos. Era uma ocasião especial. Preparou todo o roteiro de blocos com os amigos. Dias, horários e locais. Pontos de encontro, o que levar, o que não levar. Para os mais empolgados, até as fantasias de cada dia foram preparadas com semanas de antecedência.

O primeiro bloco seria do outro lado da cidade. Ele e a namorada saíram cedo de casa para não correr o risco de chegar tarde e ter de procurar pelos amigos no meio da multidão. Uma vez que o bloco começa a andar, é difícil encontrar alguém no meio da festa.

Chegaram ao ponto de encontro. Cumprimentos e abraços. O sol estava quente, a bebida gelada e a alegria era compartilhada. Há tempos não se sentia tão bem, tão feliz por simplesmente viver. Estava com a namorada e com os amigos. Cabeça tranquila e coração sereno.

O grupo decidiu seguir à frente do bloco. E a todo minuto encontrava um conhecido. Colegas de trabalho, amigos de infância, turma da escola e da faculdade. A cidade não é chamada de ovo à toa. Ele sabia que era questão de tempo.

Em meio àquele mar de pessoas, os primeiros batuques ecoaram por toda a rua. Os instrumentos de sopro acompanharam. Os foliões gritaram em comemoração.

O carnaval havia começado. Era hora de descer a ladeira.

É estranho como certas coisas são tão magnéticas a ponto de atrair o olhar. Naquela multidão de rostos pintados, sorrisos, cabelos coloridos, corpos suados e fantasias, o olhar dele foi atraído justamente naquela direção.

O coração teve um leve sobressalto. Engoliu em seco e ficou completamente imóvel por uma fração de segundos.

Já não era mais uma questão de tempo. Ela estava ali, poucos metros à frente, feliz com seus amigos e o namorado.

Por muito tempo, pensou sobre como seria esse momento e o que sentiria. Seria tristeza? Raiva? Alegria? Ou indiferença e um completo vazio? Ali, enquanto o bloco descia a ladeira, todos esses pensamentos vieram à tona em questão de segundos.

Entre marchinhas de carnaval e a multidão cantando e dançando, eles se encararam.

Anos de histórias resumidos a um olhar. Um olhar que não durou mais que um respiro.

Dentre todos os cenários que imaginou pra essa situação, acabou optando pelo mais simples e, talvez, o mais coerente para aquele momento.

Ele sabia que o olhar foi retribuído, mas teve de fingir que não se viram.

Tudo isso durou menos de um minuto.

Quando desviou o olhar, soube que não havia tristeza. Somente a constatação de que o tempo sempre cura qualquer ferida.

Lembrar da história que viveram não trazia mais dor, mas a sensação de que aquela parte da sua vida havia se encerrado. Um capítulo importante, mas não foi o último.

Sentiu-se grato por tudo o que a vida proporcionou para que aquele momento acontecesse dessa forma.

Olhou de novo em sua direção e se sentiu feliz por ver que ela também estava feliz.

A vida seguiu para ambos, por caminhos diferentes e novos amores. Mesmo fingindo não se conhecer, não havia mágoa. Apenas boas lembranças e a certeza de que estavam bem, cada um à sua maneira.

O bloco chegou ao final da ladeira e a dispersão fez com que seguissem seus caminhos com o coração leve e sem a tristeza que, por muito tempo, o fez sentir que a cidade era pequena demais para os dois.

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Rafael Barbosa

Eu escrevo. Às vezes sai algo legal. Insta: @rafabarbosa