Racismo, transfobia e gordofobia — o amor além da fantasia: Padrões estéticos em relações amorosas

Gabriela Moura
Revista Subjetiva
Published in
43 min readApr 9, 2019
Aleksandra Waliszewska

Este artigo não tem a pretensão de ser um aparato científico, mas uma organização de estudos e análises de observação da sociedade em que vivemos. Nas próximas linhas verificaremos como preconceitos como racismo, transfobia e gordofobia agem no comportamento humano durante uma relação amorosa com compromisso: namoros e casamentos. Buscaremos mostrar que sim, nos atraímos e nos relacionamos por gosto, porém, o que forma este gosto? Antes de o nosso corpo disparar adrenalina e produzir endorfina, o que nos deixa mais propensos a este ou aquele estereótipo? Quais são as consequências de uma sociedade desigual na saúde mental de mulheres preteridas por não se encaixarem nesses padrões? O que esse tipo de análise tem a ver com as militâncias sociais? Devemos misturar as coisas?

Este assunto ainda é evitado, seja por ser doloroso para as mulheres atingidas, seja pelos homens estarem em uma posição de conforto, o que faz com que o debate nem sequer comece. É comum que as pessoas reduzam essa problematização a pura reclamação, como se fosse um tema pouco ou nada importante. Além disso, a romantização das relações humanas via cinema, televisão e literatura nos levou a crer que o amor realmente é um acaso que acontece quando tem que acontecer, livre de conflitos e contestações. Com este texto buscaremos revirar esta ferida e mostrar que, além do acaso, outra coisa exerce forte influencia na hora da escolha de um parceiro ou parceira: a construção social. O que é belo ou o que é feio para a sociedade e por que estes conceitos são naturalmente aceitos e dificilmente questionados.

Esse texto não trata o amor como algo frívolo, mas como um tipo de relação humana saudável e natural, a qual todos têm direito. Por meio de relacionamentos amorosos podemos nos desenvolver e construir uma troca de experiências frutífera, que nos auxilia em nossas potencialidades humanas, ajuda a manter a saúde mental, permite exercitar tolerância, generosidade e afeto. Por isso, aqui tratamos amor como uma necessidade humana e não mero capricho. A impossibilidade de vivenciar relações saudáveis e livres de preconceitos acarretam consequências para a saúde física e mental, como veremos mais para frente.

Serão utilizadas algumas referências de autores que ajudarão a melhor compreensão do que se pretende abordar e a responder as perguntas: Se eu não quero ficar com uma mulher negra isso faz de mim um racista? Sou obrigado a ficar com uma mulher trans para não ser taxado de transfóbico? Vamos tentar entender até onde vai o mito da liberdade de escolha pela escolha.

1 — De onde vem o belo

beleza be.le.za sf 1 Qualidade do que é belo. 2 Harmonia de proporções, perfeição de formas. 3 Mulher bela. 4 Bondade, excelência. 5 O tipo da perfeição física. 6 Coisa bela ou muito agradável.

O conceito de beleza varia de acordo com a cultura local e muda com o tempo. A História da Arte apresenta a beleza segundo gregos, romanos, africanos e árabes, entre outros povos, de maneiras diferentes e mutáveis. A seguir iremos explanar ligeiramente um pouco de alguns dos muitos conceitos desta “qualidade”, que foi sempre associada ao que é bom, tornando-se um adjetivo e opondo-se ao feio, ao desagradável. A beleza é o que se quer alcançar. A feiura é o que se quer evitar. Estes são os conceitos populares quando falamos unicamente de estética. A beleza sempre teve uma relação íntima com a arte. Grandes mestres pintavam suas Vênus respeitando o que na época era considerado bonito e desejável, ainda que mais de um modelo de beleza estivesse em aceitação. Ou seja, podemos ter alguns padrões coexistindo na mesma sociedade.

Ainda hoje consideramos uma forma bela quando ela é proporcional. A proporção como indicativo de correto surgiu nos estudos dos filósofos pré-socráticos, quando estes buscavam o entendimento do princípio de todas as coisas, entre os séculos VII e VI a.C. Quem analisará isto mais a fundo, unindo estes conceitos de proporção e números a temas como matemática, ciência natural e estética é Pitágoras, em VI a.C., defendendo que tudo o que existe apenas existe porque segue uma ordem de leis matemáticas. E isto será aplicado no estudo da música, da arquitetura e do corpo humano.

No Egito, a busca pela beleza seguia ações mais práticas. A maquiagem, feita a partir da mistura de metais pesados, já era produto de uso cotidiano incorporado aos hábitos de higiene. Camponeses e faraós faziam uso de itens que destacassem pontos como bocas e olhos. A maquiagem também era usada em estátuas representando divindades. Misturas feitas a partir de leite, mel e azeite eram usadas para hidratação de pele e cabelos, acreditando-se também que possuíam o poder de atrair parceiros sexuais.

Voltando à Europa, terra que influenciou outras partes do mundo com seus signos, temos as cores atribuídas a fortes simbologias a partir da Idade Média. Em A História da Beleza, Umberto Eco organizou alguns escritos sobre esta representação. Na obra ele nos mostra que no século XII as pessoas consideradas mais bonitas eram as de cabelos ruivos ou louros. Todavia, a cor amarela tinha um duplo significado. Se por um lado era associada ao ouro, indicando prosperidade (e apontada no dourado dos fios dos cabelos mais belos), por outro também era considerada a cor da covardia e associada a pessoas marginalizadas, rejeitadas, loucas, muçulmanos e judeus. (pg. 123) O fato de muçulmanos e judeus serem, na Europa da Idade Média, considerados seres inferiores e rejeitados, já nos escancara uma grande carga de xenofobia refletindo o que então seria considerado feio e inferior, em comparação aos cabelos louros, que eram tidos como o indicador de pessoas bonitas. Em A História da Feiura, Umberto Eco nos permite compreender que estes conceitos, porém, não seguem a exatidão matemática pretendida por Pitágoras.

“Dizer que belo e feio são relativos aos tempos e às culturas (ou até mesmo aos planetas) não significa, porém, que não se tentou, desde sempre, vê-los como padrões definidos em relação a um modelo estável. Pode-se sugerir também, como Nietzsche no Crepúsculo dos ídolos, que ‘no belo, o ser humano se coloca como medida da perfeição;’ (…) ‘adora nele a si mesmo. (…) No fundo, o homem se espelha nas coisas, considera belo tudo o que lhe devolve a sua imagem. (…) o Feio é entendido como sinal e sintoma da degenerência (…) Cada indício de esgotamento, de peso, de senilidade, de cansaço, toda espécie de falta de liberdade, como a convulsão, como a paralisia, sobretudo o cheiro, a cor, a forma da dissolução, da decomposição (…) tudo provoca a mesma reação: o juízo de valor ¿feio¿. (…) O que odeia aí o ser humano? Não há dúvida: o declínio de seu tipo’.

O argumento de Nietzsche é narcisicamente antropomórfico, mas nos diz, justamente, que beleza e feiúra são definidas em referência a um modelo ‘específico’ — e a noção de espécie pode se estender dos homens a todos os entes, como fazia Platão na República, aceitando definir como bela uma panela construída segundo as justas regras artesanais, ou Tomás de Aquino, para quem o belo é dado, além de uma correta proporção e da luminosidade ou clareza, pela integridade e, portanto, uma coisa (seja ela um corpo humano, uma árvore ou um vaso) deve exibir todas as características que a sua forma deve impor à matéria. Neste sentido, não se considerava feio somente aquilo que fosse desproporcionado, como um ser humano com uma cabeça enorme e pernas curtíssimas, mas eram ditos feios também os seres que Tomás definia como ‘torpes’, no sentido de ‘diminuídos’, ou seja — como dirá Guilherme de Alvernia (Tratado do bem e do mal) -, aos quais falta um membro, que têm apenas um olho (ou até três, pois é possível apresentar um defeito de integridade também por excesso). Portanto, eram impiedosamente definidos como feios os erros da natureza, que os artistas tantas vezes retrataram sem nenhuma compaixão — e, para o mundo animal, os híbridos, que fundem inadequadamente os aspectos formais de duas espécies diversas.” (A História da Feiúra — Humberto Eco pgs. 15–16)

Nas representações em pinturas, os artistas buscavam reproduzir os anseios do que a sociedade entendia como ideal de beleza. É possível notar isso comparando as diversas Vênus ao longo da história da arte, mostrando que a imagem do belo muda com o tempo. A mulher renascentista, por exemplo, é sempre loira ou ruiva, e extremamente cuidadosa com a beleza, sobretudo com os cabelos.

Dando um pulo para os dias atuais, mas mantendo em mente os itens já apresentados, podemos observar que a beleza não apenas é um conceito cultural como hoje também é usada como moeda de troca e de distinção social, como mais uma vez Eco nos apresenta:

“O feio é também um fenômeno cultural. Os membros das classes ‘altas’ sempre consideraram desagradáveis ou ridículos os gostos das classes “baixas”. Poderíamos dizer, é certo, que os fatores econômicos sempre pesaram nestas discriminações, no sentido em que a elegância sempre foi associada ao uso de tecidos, cores e pedras caríssimos. Mas muitas vezes o fator discriminante não era econômico, mas cultural. É uma experiência habitual destacar a vulgaridade do novo-rico que, para ostentar sua riqueza, ultrapassa os limites que a sensibilidade estética dominante estabelece para o ‘bom gosto’.” (A História da Feiúra — Humberto Eco pg. 394)

A beleza está tão associada a poder aquisitivo que tudo o que remete ao belo é caro e menos acessível. A música considerada boa é a erudita e, preferencialmente, internacional, enquanto as manifestações populares como funk, forró e samba lutam diariamente para resistir à colonização estrangeira ou apagamento. A beleza feminina vem apresentada seguindo padrões europeus. São consideradas mais belas as mulheres magras, altas, brancas. A arquitetura e a moda seguem a tendência das internacionalização, utilizando estas influências para que sejam consideradas refinadas. Expressões preconceituosas como “cara de pobre” e “cara de empregada” são, ainda hoje, utilizadas para apontar pessoas consideradas feias. Temos no mercado um enorme leque de títulos de revistas que ditam o que é esteticamente aceitável. Publicações como Vogue, Elle, Glamour, Marie Claire, que raramente estampam suas capas com mulheres negras. Estas publicações também ignoram totalmente as mulheres gordas e mulheres trans, deixando-as totalmente às margens do ideal físico aceitável pela sociedade. Como a razão da existência dessas revistas é o consumo, presume-se que o mercado da moda e da cosmética aparentemente ignora o poder de consumo dessas mulheres que são deixadas de lado. Também parte daí a lógica da indústria da beleza. Vamos analisar dois polos: marcas populares como Avon e Jequiti, e nomes que estampam produtos exclusivos, como Clarins e Yves Saint Laurent. Em ambos os casos o conceito vendido é o de beleza, porém as marcas caras prometem resultados melhores e ainda carregam a promessa do VIP, ou seja, se vendem como itens a serem utilizados por pessoas de “bom gosto”.

O estudo da indústria da beleza daria outro texto enorme, e como não é esse nosso foco, vamos resumir essa parte relembrando que essa indústria é quase toda para mulheres. Cremes contra rugas, centros de estética e academias vendem seus produtos para todos os gêneros, mas é para a beleza “feminina” (entre aspas para deixar o conceito de feminino no ar) a que se dirige a maior e mais agressiva parte da publicidade desses itens. Uma mulher de “boa aparência” na sociedade atual é, na esmagadora maioria das vezes, representada como sendo branca, podendo ou não estar bronzeada, de olhos e cabelos mais claros, dentes muito brancos e perfeitamente alinhados e cuja pele não possua nenhuma mancha e nenhum pelo. As unhas devem estar esmaltadas, e podem ser longas ou curtas. E o corpo precisa ser magro. Esse descritivo é para relembrarmos o poder da representação. Então vamos aproveitar e fazer o exercício: quantas vezes as mulheres trans apareceram em novelas, comerciais e filmes sem ser sob a forma de piada? Quando mulheres negras apareceram em novelas sem representarem empregadas e babás? Podemos até citar uma ou duas exceções, mas se tiramos o zoom do cenário, vemos que esta falta de representatividade é gritante.

Às mulheres negras, gordas e trans restam posições sociais de fetichização, ou seja, são mulheres lembradas apenas para o prazer dos homens, que as veem não como seres humanos completos, dotados de talentos, sentimentos e desejos, mas criaturas nascidas para a satisfação de outras pessoas. Dessa forma, mulheres negras, trans e gordas perdem importância na sociedade como um todo, sofrendo consequências diversas como maior dificuldade de inserção no mercado de trabalho, que com frequência usa o atributo “boa aparência” na hora de selecionar o que seriam bons trabalhadores, e a dificuldade de estabelecimento de relações estáveis. Mesmo com a atuação forte de movimentos feministas contra imposições que reduzem a mulher à sua aparência física, o visual feminino é usado como arma contra as mulheres.

“Pesquisas recentes revelam com uniformidade que em meio à maioria das mulheres que trabalham, têm sucesso, são atraentes e controladas no mundo ocidental, existe uma subvida secreta que envenena nossa liberdade: imersa em conceitos de beleza, ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle. Não é por acaso que tantas mulheres potencialmente poderosas se sentem dessa forma. Estamos em meio a uma violenta reação contra o feminismo que emprega imagens da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da mulher: o mito da beleza. Ele é a versão moderna de um reflexo social em vigor desde a Revolução Industrial. À medida que as mulheres se liberaram da mística feminina da domesticidade, o mito da beleza invadiu esse terreno perdido, expandindo-se enquanto a mística definhava, para assumir sua tarefa de controle social.” (O mito da beleza — Naomi Wolf, pg. 13)

Dizer que o que nos leva a achar pessoas bonitas ou feias é apenas questão de gosto não é só uma afirmação preguiçosa, pois ignora os pontos já ditos anteriormente, mas também uma análise superficial, que não leva em conta os pormenores de uma sociedade profundamente preconceituosa, que apenas aceita alguns estereótipos, ignorando todas as particularidades humanas, que fazem as pessoas serem tão diferentes umas das outras, mas não menos interessantes apenas por não se encaixarem no padrão Vogue de “beleza correta”. A busca incessante pelos padrões alimenta a indústria da moda, da cosmética e da “boa forma”, por isso há um esforço tão grande em torna-los cada vez mais difíceis de serem alcançados.

2 — O nascimento das paixões

“A ciência vem buscando desvendar as alterações que ocorrem no corpo de quem se encontra em estado de graça. E ao contrário do que se pensa, não é o coração o órgão principal neste processo. O cérebro está no centro de tudo e, por isso, há diversas substâncias, como hormônios e neurotransmissores, responsáveis pelas sensações que o estar apaixonado proporciona. Os pesquisadores Donald F. Klein e Michael Lebowitz, do Instituto Psiquiátrico Estadual de Nova York (EUA), descobriram que a feniletilamina, um neurotransmissor mais simples, está presente em grande quantidade nos cérebros de pessoas apaixonadas e é responsável pelas modificações fisiológicas no corpo humano. Já Helen Fisher, pesquisadora e autora do livro A Anatomia do Amor (Ed. Eureka), expõe que os sintomas como falta de sono e/ou apetite, assim como a exaltação dos apaixonados, se deve à dopamina e à norepinefrina, neurotransmissores que estimulam o cérebro. O organismo produz também substâncias que são secretadas por todo o organismo e influenciam a atração ou falta de desejo entre as pessoas, conhecidas como feromônios. Além disso, com o aumento dos níveis de testosterona há maior estímulo para o desejo sexual; a oxitocina — conhecida como o hormônio do amor — (nas mulheres) e a vasopressina (nos homens), são responsáveis por estreitar os vínculos entre o casal. E como resultado há uma boa dose a mais de dopamina que proporciona a sensação de recompensa e prazer.” (Artigo: O cérebro apaixonado — Leonardo Valle, Revista Viva Saúde — UOL)

Comecei este ponto do texto com essa explicação sobre o comportamento do nosso corpo porque um dos argumentos de quem defende que paixão e amor são uma “questão de gosto” é que a ciência explicaria por que nos apaixonamos por algumas pessoas e por outras não, e que tudo seria consequência de reações químicas que acontecem em nosso cérebro. Mas, lendo com atenção, vemos que estas reações são a consequência, e não a causa da paixão. Portanto, antes das descargas de adrenalina nós precisamos de um contato visual ou outro acontecimento que nos uma com o ser desejado, que com certeza atenderá algumas de nossas exigências estéticas. É ai que a explicação científica se une à explicação do item anterior que usou as capas das revistas de moda como exemplo para mostrar como nosso gosto é moldado. A socióloga Maria Dolores Mota nos explica a construção do amor em seu artigo Amor e Morte, que originalmente foca na violência contra a mulher. Mas, para o que pretendemos estudar neste texto, destacamos o seguinte trecho:

“O amor não é apenas um sentimento, mas é um construto da sociedade. O sentimento é despertado, sentido e formatado de acordo com códigos sociais. Assim, desde a idade média até o presente momento, várias representações de amor se constituíram na história, como o amor cortês, o amor romântico, o amor paixão, e mais recentemente novas formas de amor estão em curso como o amor confluência e o amor construção.” (Amor e Morte: tramas afetivas do feminicídio — Maria Dolores de Brito Mota)

É muito comum homens dizerem que “até” acham mulheres negras bonitas mas, por uma questão de gosto, não ficariam com uma. Ou homens que negam relacionamentos como mulheres trans porque isso não condiz com sua opção sexual e, neste caso, cometendo um erro grotesco duplo: a transfobia e a confusão entre orientação sexual e identidade de gênero. Às vezes, um racismo velado vem à tona com a famosa frase: Até já fiquei com uma negra.

É claro que em uma relação muitos outros pontos são levados em conta, a chamada beleza interior, características que tornarão uma pessoa interessante. Seja a forma como a pessoa vê a vida, a maneira que age diante de situações diversas e outras possíveis qualidades que não levem o exterior em conta, como generosidade, bom humor e talentos diversos. Mas para chegarmos a este ponto precisamos de convivência. E como saber se uma pessoa negra é interessante, bem humorada e generosa se você não deu a chance para que esta convivência acontecesse? Como esperar conhecer as demais qualidades de uma pessoa se você a afasta por não atender seu interesse primário, que é o físico? Sem essa permeabilidade ao que julgamos ser puramente “gosto”, o contato mais íntimo não acontece.

Até o momento, com o apoio de estudos feitos sobre o tema, estou apresentando a análise, explicando o assunto a partir do meu local de fala, que é ser uma mulher negra. Seria isso uma imposição sobre o tesão alheio? Não. Julgo natural que a maioria das pessoas repudie tal assunto, por diversos motivos, mas principalmente por ser um tema áspero. Mas, exatamente por ser um assunto negligenciado, faz-se necessário que o status-quo seja questionado, e que as pessoas sejam tiradas de sua zona de conforto.

Ainda é preciso lembrar que não é o ato de ficar com uma mulher negra, gorda ou trans que lhe fará menos racista, gordofóbico ou transfóbico, pois utilizar essas mulheres para afirmar uma fachada não configura uma relação afetiva, mas uma relação tóxica e abusiva, também chamada de tokenização.

3 — A necessidade do questionamento

Em uma das primeiras vezes que eu citei a construção social como um dos fatores determinantes na escolha de parceiros afetivos, um homem me disse: “Não tem motivo algum misturar militância com relacionamentos.”

A negação do direito da afetividade é uma das faces das três opressões analisadas: racismo, transfobia e gordofobia. Preconceitos agem diretamente na saúde mental de quem os sofrem. Problemas como depressão e ansiedade são ainda mais comuns em indivíduos pertencentes a grupos vulneráveis. Um estudo promovido liderado por Christopher Salas-Wright, professor de uma universidade do Texas, e divulgado pela publicação científica Addictive Behaviors, concluiu que pessoas que sofrem racismo estão mais propensas a desenvolver depressão e alcoolismo, porque os efeitos do racismo são semelhantes à morte de um ente querido.

O livro “Psique&Negritude-Os efeitos psicossociais do racismo” aborda a tensão causada pela discriminação:

“As marcas emocionais, causadas por uma discriminação continuada, exigem estratégias de defesa e, ao mesmo tempo, recursos internos para ‘ir adiante’. Todos sabem das peculiaridades do racismo à brasileira — um racismo sem racistas. A pessoa negra conhece a discriminação desde seus primeiros anos de vida, sem que nunca o outro lado se declare. Quando perguntamos para a maioria dos brasileiros: ‘Você é racista?’ A resposta invariável é: ‘Não.’

As instituições públicas também se declaram não-racistas, universalistas. No entanto, não é o que experimenta a criança negra, por exemplo, na escola. Para ela, a escola pode tornar-se num espaço de exclusão. O contexto, à sua volta, muitas vezes, reproduz experiências de

rebaixamento concorrendo para o enfraquecimento da autoestima e para o desencorajamento. Alguns fatos relacionados a isso incluem a maneira pela qual a história do povo negro brasileiro foi, tradicionalmente,contada; a forma pela qual o negro é representado nos livros didáticos e na mídia (submisso ou coadjuvante); os apelidos postos pelos coleguinhas brancos: ‘macaco, piche, cabelo ruim’, entre outros.”

Mas por que falar exatamente sobre relacionamentos?

Quando mulheres são preteridas por conta de estruturas sociais como os três casos abordados nesse texto, abre-se uma porta muito perigosa: as relações abusivas. Segundo Maria Dolores Mota:

“O amor romântico e o amor paixão predominantes no nosso imaginário social, integrados a relações de gênero desiguais tornam-se avassaladoras para as mulheres ao acentuarem a sua sujeição às exigências de um amor que estabelece o homem como o conquistador, o condutor da relação, determinando como desejo amoroso da mulher ser o objeto de desejo do homem. Em geral as pessoas acreditam que se o homem gosta e quer a mulher, esta não deve recusar, deve sentir-se agraciada por isso. Ditos populares como “ruim com ele, pior sem ele”, exprimem essa idéia. O amor como uma construção social emerge de “uma teia de relações sociais de poder, cujas dinâmicas estão na origem da desigualdade, da discriminação e da violência”. A vivência do amor reproduz as relações de poder desiguais entre homens e mulheres, de maneira que os discursos amorosos podem garantir ações que legitimam a continuidade do sistema patriarcal e se tornam ‘discurso de risco para as mulheres’.” (Amor e Morte — tramas afetivas do feminicídio)

Ou seja, por esse trecho do artigo da socióloga Maria Dolores Mota, o perigo reside no fato de as mulheres serem ensinadas a aceitarem o amor que lhes dão, em vez de buscarem o amor que de fato elas merecem (nós merecemos), respeitoso, prazeroso e não doloroso e humilhante. No afã de uma relação estável, ainda que essa estabilidade seja uma ilusão, corre-se o risco de uma submissão causada pelo medo da solidão. No caso das mulheres negras esse padrão é mais facilmente entendido quando olhamos para trás e analisamos a História. No caso das mulheres trans, o agente causador é a cisnormatividade, e para a gordofobia o gatilho é o padrão de magreza.

“Essa reflexão é de fundamental importância quando pensamos na afetividade da mulher negra, que, desde os períodos coloniais, é explorada, violentada e desvalorizada esteticamente. Nos dia atuais, quando esta mulher busca um parceiro para manter uma relação fixa, na maior parte das vezes, não tem muitas opções de escolha e acaba tendo uma vida solitária. (…)
(…)Os únicos espaços em que a mulher negra não é minoria são aqueles onde predominam os serviços domésticos e subalternos — como nos tempos da escravidão –, tanto na sociedade como nas mídias. Nas novelas, os papéis oferecidos às negras são sempre os de serviçais; nas campanhas publicitárias, elas fazem propaganda de produtos de limpeza ou aparecem ao fundo, enquanto em primeiro plano aparecem algumas pessoas brancas, representando uma família feliz.” (Por que as mulheres negras são minoria no mercado matrimonial? — Clarice Fortunato Araújo)

Sabendo que esses fatores podem vir a prender mulheres em relações potencialmente nocivas, o primeiro passo é analisar como nasce a noção de beleza, como fizemos nos tópicos anteriores, e como o preconceito se manifesta, que é o que faremos nos tópicos a seguir. A partir disso é esperado que as mulheres consigam fazer exercícios de autoconhecimento para a compreensão de sua própria realidade, e assim desenvolver suas defesas a partir do reconhecimento dessas relações perigosas.

O que se pretendeu até aqui foi explicar como nosso senso de beleza é moldado socialmente, o que nos deixa propícios a achar determinados traços mais bonitos que outros, o que nos leva, naturalmente, a buscar aproximação.

Para os homens, a leitura desses pontos pode ajudar a fazer uma auto-crítica de seu senso estético e comportamento, e o entendimento de que mulheres não nascem para pura satisfação sexual e não merecem viver relações escondidas.

4 — Transfobia — ódio que desumaniza e mata

Eu pedi licença para algumas amigas para usar este espaço. Falar de transfobia sem sofrê-la é ter a ciência de que, por mais intensidade que eu ponha nas linhas seguintes, jamais saberei a real dor desta ferida. Estou, neste ponto, reproduzindo um pouco das muitas lições que aprendi com as pessoas trans que conheci nos espaços feministas, e é com gratidão que hoje repassarei parte destas lições aprendidas.

De acordo com texto produzido por Sofia Ricardo em sua fanpage Travesti Relfexiva, travestis e transexuais têm expectativa de vida de cerca de 30 anos (!!!). Este dado assustador é consequência da situação que a sociedade colocou estas pessoas, marginalizando-as e negando direitos mais básicos. 90% dessas mulheres se prostituem como medida desesperada de sobrevivência. Somamos isso às centenas de assassinatos de pessoas trans e a falta de visibilidade desta população, cujos direitos mais básicos são negados, como o simples uso de um banheiro. Já ouvi, inclusive, pessoas cis desdenhando: “Queria eu que meu maior problema fosse o uso de um banheiro”. Pois é, pra todos verem como pessoas trans ainda lutam pelos direitos mais simples, coisas que nos são dadas gratuitamente. E é com essa enxurrada de deboches diários que as vozes das pessoas trans seguem sendo caladas, enquanto seus corpos são violados e sua saúde mental negligenciada. A transfobia, opressão reforçada por representações na mídia como programas tipo Zorra Total, têm várias faces. A fetichização é uma queixa frequente de mulheres trans, que são tratadas como objeto (descartável) por homens que querem manter relações sexuais mas não cogitam mantém um relacionamento, muito menos assumi-lo em público. É aqui que começamos a entrar no tema central deste texto, o amor e a afetividade.

No blog “Gênero à Deriva”, o texto intitulado “a Genitalização das pessoas e dos relacionamentos” mostra como a atribuição do gênero à genitália se torna respaldo para a propagação da transfobia em relacionamentos:

“Homossexualidade não requer simetria genital.E nem heterossexualidade requer assimetria genital. Se eu sou uma mulher trans* que não fiz cirurgia genital e possuo um pênis, e me envolvo com uma mulher cis, é obvio que nossos genitais não serão simétricos, mas isso não deixa de ser uma relacionamento lésbico. O mesmo acontece com um homem hétero cis que se relacione com uma mulher trans* com pênis. Genitais simétricos, mas heterossexualidade. Ainda, poderia haver simetria genital com homossexualidade no caso de duas mulheres trans* lésbicas ou dois homens trans* gays. Quando retiramos dos genitais essa importância que damos fundante das nossas relações, e retiramos essa “verdade” última das identidades (sou gay então gosto de pênis; sou lésbica então gosto de vulvas etc.) e desconstruímos essas ideias limitadas que relacionam genital-gênero-sexualidade-relações, percebemos que existe um número infinito de configurações aí fora. Só precisamos abrir a mente nos deixarmos levar sem preconceitos.”

Quando falamos de mulheres trans, muitos homens têm vergonha de assumirem para si mesmos qualquer possibilidade de sentimento de atração, pois permanecem no parâmetro da cisnormatividade que dita as regras de como deve ser um relacionamento. Esse cissexismo, que diminui e nega a dignidade das pessoas transgêneras é escancarada todos os dias sob a forma de piada, reduzindo pessoas a objeto de diversão. E então é construída a imagem de que transexuais e travestis são figuras caricatas que aparecem em programas de humor e durante o carnaval. É ignorado o fato de que estamos falando de seres humanos, com as mesmíssimas necessidades, desejos e aspirações de pessoas cis, e igualmente merecedoras de relações estáveis e saudáveis, e não o tratamento abusivo que lhes é dado todos os dias e escondido sob o “é questão de gosto”. Para ilustrar o que estou querendo dizer com isso, reproduzirei um depoimento de Daniela Andrade:

“Canso de ver pessoas escondendo preconceitos atrás de gostos pessoais. Pois bem, antes de mais nada, problematizar gostos pessoais não é obrigar as pessoas a se relacionarem com ninguém — apesar da maior parte das pessoas que querem esconder seus preconceitos levianamente acusarem quem os problematiza dessa forma. Eu por exemplo não me relacionaria com homem que não demonstrasse inteligência, com homem monotemático, que optou pela ignorância, que por exemplo só fale sobre sexo. Questão de gosto. Mas os gostos não se dão no vácuo, não brotam por combustão espontânea, os gostos também se constroem dentro de uma sociedade repleta de preconceitos misóginos, homofóbicos, transfóbicos, cissexistas, racistas, gordofóbicos, capacitistas, classistas, e tantos outros. Eu não saí da barriga da minha mãe sabendo que mulher tinha vagina, que homem tinha pênis. Isso foi ensinado pra mim. E se foi aprendido, também pode ser desaprendido. Se foi aprendido dessa forma, eu posso evoluir e agora aprender de outra forma, aprender que nem todo homem tem um pênis e veja que coisa, continuam homens; nem toda mulher tem uma vagina, e veja que coisa, continuam mulheres. Eu não saí da barriga da minha mãe sabendo que existiam pessoas masculinas e pessoas femininas, pois masculinidades e feminilidades são construções sociais. Eu não saí da barriga da minha mãe achando que a beleza é branca, mas desde que me entendo por gente o padrão europeu é tomado como o que devemos perseguir. Que a pessoa linda de morrer é branca, é loira, tem os olhos claros, tem a pele macia e é magra. Então apenas parem de justificar preconceitos com: mas eu não escolhi, é questão de gosto. Eu também não escolhi nascer em uma sociedade cheia de preconceitos, em uma sociedade que invisibiliza, deslegitima, descredencia e marginaliza as pessoas negras, as pessoas trans, as pessoas gordas, as pessoas tomadas como feias, anormais, fora do padrão, doentes. Eu não escolhi que me martelassem desde sempre todos os preconceitos possíveis e inimagináveis. Mas eu posso escolher o que fazer com todos os preconceitos que naturalizaram para mim. Eu posso escolher o que fazer com tudo o quanto a sociedade me disse que eu deveria seguir. Eu posso escolher ver beleza em pessoas que sempre me disseram que nelas eu só deveria enxergar feiúra. Eu posso escolher ser preconceituosa e não abrir minha boca para manifestar meus preconceitos como se eu fosse uma mera marionete do sistema, sem nenhuma vontade e incapaz de praticar qualquer ação para modificar o meio, incapaz de praticar qualquer ação para perpetuar os mesmos preconceitos que desde sempre estou presenciando. A desculpa do ‘é só questão de gosto’ não isenta ninguém do que a pessoa diz depois, afinal de contas, não somos robôs programados para sempre pensar do jeito A e agir do jeito B.”

Faço aqui um paralelo entre transfobia e racismo. Assim como aconteceu com negros escravizados, pessoas trans são animalizadas, ou seja, tratadas como seres primitivos, sem sentimentos e de ações automatizadas, que servem apenas para diversão de outras pessoas. Uma das principais desvantagens das pessoas trans é que não há uma diretriz nacional, como por exemplo leis, que coíbam ações transfóbicas. Tampouco há metodologias de ensino nas escolas que debatam a transgeneridade.

Combater a transfobia implicaria, entre outras ações, repudiar e proibir piadas transfóbicas, o que nos leva a uma seara maior, pois sabemos que estas ações enfrentariam grande dificuldade imposta por pessoas que defendem o humor a qualquer custo, mesmo que este humor implique em discurso de ódio e atitudes humilhantes. Mas, em detrimento do conservadorismo, a necessidade desse debate é urgente. É por trás de supostas ações inocentes, como piadas em programas de humor, que se esconde grande parte das dificuldades enfrentadas por pessoas trans.

Como explicitado por Daniela, questionar os por quês da solidão das pessoas trans não é obrigar ninguém a manter qualquer relacionamento amoroso, mas levar todos os sujeitos a um convite para o questionamento de onde vêm nossos hábitos e supostos gostos. O constructo social ao redor da imagem de transexuais e travestis fez com que a sociedade se comportasse como vivendo em castas, onde pessoas trans ocupam os lugares mais baixos de maneira compulsória. A genitalização do ser humano precisa ser debatida. Precisamos entender que existe uma pessoa completa ao redor do pênis e da vagina e estes órgãos não definem um sujeito em sua totalidade. Antes de definirmos nossas diretrizes amorosas precisamos compreender cada pessoa como um conjunto de características.

“Com isso não estou querendo forçar uma obrigatoriedade de que as pessoas se relacionem com mulheres trans*. É evidente que não estou falando disso. Quem acredita neste discurso ou o pratica acaba acusando algo de perigoso nas mulheres trans*, o que reforça que elas são diferentes, aberrações e anomalias da natureza. Se transgeneridade é um fator tão decisivo a ponto de apenas por ele alguém se recusar a entrar em um relacionamento, certamente é porque vivemos em uma sociedade extremamente transfóbica. O discurso da necessidade de uma pessoa trans* ser obrigada a contar sobre sua identidade só se sustenta pela crença de que ser transgênero é uma abominação. Logo, compactuar com essa prática é reproduzir a violência que pessoas trans* sofrem, de que elas não merecem viver. Propaga-se assim a disforia.” (Trecho retirado do texto “Categoria Mulher: Não Se Deixe “Enganar”, do blog Transfeminismo”)

Sabemos que mesmo com essas explicações ainda enfrentaremos resistência, graças à transmisoginia, que perpetua todos os dias os mesmos estereótipos que marginalizam mulheres trans. Sabemos disso porque seria ingenuidade achar que toda uma cultura de ódio muda em poucos dias. Mas, plantada a semente da dúvida em cada um, o que se espera é que a busca por informação ajude a descortinar a névoa social formada por décadas de violência às pessoas trans. Finalizo esta primeira análise com alguns dados.

“34% das pessoas trans* tentam suicídio.
64% das pessoas trans* jovens são vítimas de bullying.
73% das pessoas trans* são perseguidas em público [desde o insulto à agressão física].
21% das pessoas trans* evitam sair em público devido ao medo.
Ser uma pessoa Transgênera não é uma escolha.

Machucar alguém é!”
(Fonte: http://www.feministacansada.com/post/67679598437)

5 — Gordofobia: a dor escondida, a crueldade explícita

A gordofobia é uma herança da indústria da beleza, já citada anteriormente, além de um produto da estrutura e normatização social. As cidades são projetadas de uma forma que acaba não incluindo as pessoas gordas, como por exemplo, bancos de ônibus e cadeiras de sala de aula, fabricação de roupas, cuja numeração maior é chamada de “tamanho especial”. Além disso, as pessoas gordas têm seus corpos patologizados, comumente associados a doenças, em contraponto das revistas que vendem a magreza como o ideal de saúde, também.

Com os padrões de magreza cada vez mais difíceis de alcançar e a criação de procedimentos caríssimos, que se multiplicam todos os dias com a promessa de emagrecimento rápido e fácil, a gordofobia tomou conta do senso comum e foi naturalizada. A gordura corporal virou sinônimo de feiúra. Para legitimar a gordofobia a mídia criou um problema e as soluções.

O problema: ser gorda.

A solução: dietas extremas, procedimentos estéticos dolorosos e um murro na autoestima das mulheres, que são psicologicamente abusadas todos os dias com um bombardeio de revistas de dieta que prometem emagrecimento a qualquer custo, criam dietas da moda que muitas vezes colocam a saúde em risco, pela deficiência de nutrientes ingeridos diariamente, e colocam crianças, adolescentes e mulheres adultas como constante alvo de humilhações.
A gordofobia também é um empecilho para relações amorosas saudáveis. Para ilustrar esse tópico do texto, eu solicitei que algumas mulheres me enviassem seus depoimentos para apresentar quais foram seus principais traumas envolvendo a gordofobia e como isso impactou em suas relações afetivas.

Depoente n.1:
“Eu nunca fui magra. Eu sou gorda.

Eu desde criança soube que o amor tem padrão, ele é magro e um nunca me encaixei. Sempre vi na tv e nos filmes, as moças magras eram amadas e as gordas eram a piada e frustradas. Na adolescência o primeiro amor chegou e eu já me torturava com o discurso que me ensinaram: ele nunca iria amar, nunca iria prestar atenção em mim, porque eu sou gorda. E então foi platônico, porque a sociedade sempre diz que mulheres gordas não merecem ser amadas pois são nojentas, moles, enormes, desajeitadas e nada sensuais, como eu poderia desejar um dos garanhões do colégio, um moço magro e bonito? Deveria me colocar no meu lugar, fechar a boca e emagrecer, até minha família (com gente gorda porque é uma tendência genética enorme) já rezava o mantra com a desculpa que era unicamente pela saúde, mas também era por estética, pois eu precisava aproveitar minha juventude (que é o auge da beleza) e para isso precisava (e preciso) ser magra para conseguir paquerinhas, namorar e veja só…ser amada, como se mulheres mais velhas, gordas não merecessem serem amadas, mas apenas piadas e uma autoestima no lixo.

Já passei por muitas situações péssimas por ser gorda e o amor/tesão ter padrão: homens me abordarem em festas, falarem o quanto eu sou linda, meus olhos maravilhosos, mas dão meia volta e vão ficar com a magra, porque ficar com gorda ~~queima o filme~~. Um cara já me disse que eu deveria ficar com ele pois era gorda e ele já estava até me dando uma chance. Pelo pensamento dele, eu deveria abraçá-la com todas minhas forças, afinal ninguém que a gorda, quem quer mulher gorda? Muitas vezes estou na rua e passa um casal, o cara está com uma menina padronizada, mas fica lá, me olhando babando e eu sei que se ele estivesse solteiro ele nunca iria me escolher para andar por aí, pois quem consegue amar e foder uma gorda? Tinder e OkCupid não funcionam da mesma forma como funciona para minhas amigas magras, a oferta é muito menor, pois só por ser magra você já merece uma chance de se mostrar uma pessoa interessante: ser gorda é ser desumanizada o tempo todo, pois somos resumidas ao corpo gordo e corpo gordo não pensa, não sente, não é interessante, quando a mulher gorda não é vista como a que dá mais fácil porque é mais difícil pra gente ~~arrumar quem queira~~ e então viramos meros orifícios para prazer alheio.

Tudo isso me gera medo: quando começo a conhecer alguém, eu tenho medo da pessoa não sentir atração por eu ser gorda, da pessoa sentir nojo, de não “servir” para aquela pessoa, achar que a pessoa tá por dó/falta de opção/tirando uma com a minha cara e outros tantos pensamentos terríveis que me perseguem, mas tais pensamentos vem de todo discurso gordofóbico internalizado, de todas piadas e coisas que já ouvi sobre mulher gorda, de todas pessoas que não namoram gordas pois a pessoa tem vergonha de apresentar uma como namorada e andar com ela por aí.” ( F. C., de São Paulo)

A depoente n.2 nos trouxe duas experiências:

“Primeiro relato: ‘Ela é, claramente, gorda demais pra você’

Meu primeiro relato é sobre um rapaz que eu costumava ficar na faculdade. Ele nunca havia reclamado do meu corpo, e reclamava constantemente que sofria bullying por ser magro e alto demais. Eu, no auge da minha falta de paciência pra preconceito reverso, deixava que o tempo o ensinasse uma lição. Ensinou. Na maior parte do tempo ficávamos em lugares privados, e não demonstrávamos qualquer tipo de carinho além do normal quando estávamos próximos de amigos. — isso parecia deixá-lo desconfortável. Com o tempo foi ficando claro que ele me escondia dos amigos dele. ‘Eu não te escondo! Eu te beijei na frente do bandejão todo!’ quando só tinham desconhecidos em volta. ‘Vou te mostrar’. E com muito custo, ele pegou minha mão e andamos de mãos dadas pelo campus, muito embora seu corpo aos poucos fosse se afastando do meu conforme os amigos dele se aproximavam, ele manteve as mãos nas minhas. ‘Tão namorando, é?’ Todos eles perguntaram, com um sorriso cínico no rosto. Negamos. ‘Só ficando’. ‘E as mãos dadas?’ ‘Quem fica não pode ficar de mão dada?’, perguntei. ‘Pode, ué, cê tem que marcar seu território, caso fuja.’ Emputeci. Para não tornar aquilo uma briga, me afastei, fui pra minha aula. ‘Mais tarde te vejo’. O mais tarde chegou e nunca mais se repetiu. Ele teve que me beijar algumas vezes pra dizer o que tava acontecendo. Ter coragem de dizer por que não queria ficar comigo de novo. ‘Meus amigos disseram que você não é boa o suficiente pra mim.’
Disseram, hein? Que surpresa.
‘Talvez não devêssemos fazer mais isso. Eu prefiro ficar com… meninas que combinem mais comigo.’ ‘Oo que você quer dizer com isso?’ ‘talvez quando você emagrecer…’ Ou talvez quando você deixar de ser gordofóbico e misógino.

Segundo relato: ‘Eu só quero ver pessoas diferentes’

Desde o início nosso relacionamento foi um tanto quanto abusivo. Nos conhecemos pela internet, e a primeira vez que nos vimos eu saí chorando. Ele tinha uma cara de desapontamento total no rosto, me olhava de cima a baixo com nojo, e no final, arrumou uma desculpa esfarrapada pra ir embora. No dia seguinte me ligou, pediu desculpas, não desmentiu, mas eu sabia que era mentira a desculpa pra ir. Mas tudo bem, ele pediu desculpas, queria me ver de novo, e parecia completamente diferente. Mais gentil. Assim seguiu-se dois meses até ele me pedir em namoro, e eu aceitar. Nosso relacionamento era ótimo, tirando as partes em que ele resolvia que não estava satisfeito com meu corpo. ‘Esse tamanho’, dizia ele, apontando a metade do tamanho da minha coxa ‘esse o tamanho que deveria ser.’
‘Você vai comer isso? Tem certeza?’
‘Não tenho problema de você ser gorda, é que ser magro é mais saudável, e o ser humano, naturalmente, se atrai por pessoas mais saudáveis’, essa eu cheguei a rir um pouco, de tão absurda que era. ‘Você podia praticar um exercício. Não sei. Emagrecer.’
Todos os dias. Até um dia, depois de um ano de namoro, nós termos a oportunidade de ficar sozinhos em casa, e decidimos fazer sexo. Eu tirei a roupa, ele me olhou de cima a baixo e, literalmente, broxou. Sentou na cama, respirou fundo, botou a roupa e disse que não estava mais no clima, ‘Você devia apagar a luz antes de fazer esse tipo de coisa’. No dia seguinte ele me ligou dizendo que estava farto do nosso relacionamento, que preferia buscar outras opções, que queria buscar outras pessoas. ‘OVque você quer dizer com isso?’
‘Olha, eu gosto de você. Mas… eu quero fazer sexo com meninas mais gostosas. você é gorda demais pra mim. Podemos ter um relacionamento aberto, pra eu fazer sexo com outras pessoas.’ ‘Tá, e eu?’’Ah… você não deveria fazer sexo, sabe?’
Aceitei. Aceitei porque acreditei nele, acreditei que eu não tinha o direito de ser feliz. E a bulimia começou. Eu tinha que emagrecer, eu tinha que receber o direito de ser feliz por merecimento, e vomitar era um jeito fácil. Não perdi quase nada de peso, e ganhei um pedido de desculpas dele, e de reatar também. Voltamos a namorar três meses depois, e ficamos juntos mais um ano até eu desmaiar por não comer, e ser diagnosticada com bulimia. Quando ele não viu problema nenhum nisso. ‘Bom, se essa é a forma que você achou, deveria continuar. Mas não tá funcionando muito bem, sabe?’ Eu resolvi terminar. O ‘gosto’ dele era me ver sofrer. Eu prefiro me ver feliz. Questão de gosto.” (Pillar, do Rio de Janeiro)

Depoente n.3:

“Sou uma mulher, sou gorda e tenho que lidar diariamente com duas coisas: espelhos e gordofobia, a primeira é reflexo da segunda. Fui ensinada desde pequena a odiar meu corpo, mas não foi apenas minha família que me ensinou, foram meus ‘amigos’, a escola e meus relacionamentos, ou o que eu entendia por um relacionamento. Ao relatar meus relacionamentos e vivências, estarei mostrando uma parte da minha vida obscura, triste e dolorosa, mas necessária para apontar como nossos ‘gostos’ são construções sociais, como nossa mídia influencia no conceito ocidental de beleza e como o belo modificou-se com o tempo e na nossa sociedade, e quem mais sofre com isto? Mulheres marginalizadas, mulheres que não estão no padrão de beleza vigente, mulheres que foram esquecidas nas revistas, mulheres que não aparecem na mídia, mulheres que não são lembradas na passarela, mulheres que carregam marcas profundas em seu íntimo.
Tenho vinte um anos e esses marcados por coisas que me atormentam até hoje, mexem com meu psicológico. Nunca fui magra, nunca estive no peso ideal, nasci gorda. Além de aturar durante toda infância as brincadeiras relacionadas com meu peso, perdi meu bv com uma aposta, sim, pois a aberração da turma (a menina gordinha),eu teria que ter seu primeiro beijo concedido com uma aposta, o menino apostou que me beijaria. Ele me beijou duas vezes, eu não entendia o motivo das risadas e somente anos depois descobri que tudo não passava de uma aposta. Neste momento me senti um lixo, uma piada. Com quatorze anos me envolvi com um rapaz mais velho de dezessete, ele foi a pessoa que mais destruiu minha vida e minha autoestima, por eu ser gorda ele achava que estava fazendo um favor ficando comigo (ele não foi o único a achar isto). E em troca eu deveria dar para ele o que? Sexo. Um dia ele tentou forçar, mas reuni todas as minhas forças e consegui escapar, assustada, não contei para minha mãe com medo dela me julgar afinal eu só tinha 14 anos. Ele ficou dois meses me ameaçando no Orkut, criando perfis fakes e divulgando fotos minhas com legendas ridicularizando meu peso, meu corpo, me chamando de vaca leiteira. Eu era uma adolescente assustada, sem muitos amigos. Ninguém podia me ajudar, fui me afastando de todos, da minha família dos poucos amigos que me restavam. Eu entrei em depressão, passei a odiar quem eu era a odiar ainda mais meu corpo, foi o momento que a depressão bateu na minha porta, foi o momento que eu não conseguia mais fazer nada a não ser chorar, dormir, engordei muito, fiquei dois anos com medo de garotos de me aproximar de um. E sabe que eu aprendi com este relacionamento? Que todos os que eu tive após esse se assemelharam em algum momento com isto. O que eu já tive que aturar? Homem procurando sexo, pois gorda não diz não para eles, feitichizando meu corpo, homem com vergonha de me assumir e sair comigo e que ficava somente escondido comigo, homem invadido meu inbox e mandando eu emagrecer, pois ele sentia NOJO de pessoas gordas, não se sentia ATRAÍDO por mulheres gordas, homens dizendo que eu tenho um belo rosto, mas era gorda. Isto é somente uma pequena parte do que eu já passei isto foi apenas para dizer que: vocês homens não se sentem atraídos por mulheres gordas, porque elas não estão na playboy, não estão na mídia. Nossa sociedade abomina nossos corpos e nossas gorduras, condenam nossas estrias e fazem chacota da nossa dor. Não nos dão dignidade nem num relacionamento, temos que lidar com tudo isto e um pouco mais. Esta parte da minha vida eu jamais vou esquecer ela faz parte de mim do que eu sou e se hoje eu tenho medo de ter um relacionamento é em consequência não somente por um relacionamento, mas por todas as experiências que tive, pois eu sei que vou ser rejeitada. Hoje eu evito sair com homens para não me magoar, para não ser a chacota da noite, eu evito sair para festas e baladas por que eu cansei de ser piada da noite de ser a aposta entre amigos, cansei de ser a “baranga” da sociedade. E quem vai se importar com a minha dor e a dor de outras tantas mulheres que são diariamente marginalizadas por um padrão de beleza que nos contempla, mas sim que exclui e deixa marcas?” (C. M., de Santa Catarina)

Os depoimentos acima apresentam alguns pontos em comum:

  • Todas as mulheres sofreram situações de gordofobia muito cedo, sendo expostas a cenários humilhantes em uma idade em que as meninas sentem muitas dúvidas e inseguranças sobre seu próprio corpo.
  • Todas foram expostas.
  • Todas foram abusadas física e psicologicamente por seus parceiros. E o abuso psicológico aconteceu porque esses homens queriam impor seus padrões nos corpos dessas mulheres.

Esse preconceito é tão violento que causa transtornos terríveis a essas mulheres. Essa opressão está intimamente ligada a problemas como depressão, anorexia e bulimia. Ou seja, além da exposição vexatória, essas mulheres também têm sua saúde roubada pelo meio em que vivem e por pessoas que deveriam protegê-las e apoiá-las.

A gordofobia é irmã da misoginia. Explico. Ao impor suas vontades sobre os corpos de suas parceiras, esses homens as tratam como algo que lhes pertence. Ou seja, ameaças como “eu fico com você, desde que você emagreça” é o tratamento dado a um ser humano que está sendo visto como objeto de prazer desses homens. Quando tocamos nesse ponto, alguns homens se defendem “mas eu sou obrigado a ficar com uma menina gorda?”

A resposta não poderia ser mais óbvia: não, da mesma forma essas mulheres não são obrigadas a se relacionarem com abusadores. Pois é isso que são os homens que humilham mulheres por conta de seus corpos, seja em público, seja na cama ou por gestos sutis como evitar andar de mãos dadas na frente de família e amigos por vergonha. Mulheres gordas vivem sob a vigilância do mundo. Assuntos como saúde são de interesse individual, portanto não deveria ser usado como arma contra essas mulheres. Com os depoimentos acima pudemos ver que o “questão de gosto” nada mais é que puro preconceito enraizado por anos de doutrinação pela mídia gordofóbica, que vende corpos retocados em editores de imagem como sendo uma obrigação de todas as mulheres.

Aqui vemos nitidamente que a gordofobia tolhe a liberdade individual e decepa a saúde física e mental das mulheres.

6 — Racismo: o determinante da cor do amor

A solidão da mulher negra já foi tema de estudos, virou livro, é frequentemente relatada, mas ainda assim é colocada em dúvida. Esse assunto, além de denso e complexo, não é um debate sobre “amor”, mas sobre racismo. O fato de mulheres negras serem preteridas como parceiras afetivas é uma demonstração racista, porém vamos entender melhor isso nos pontos a seguir.

Ana Cláudia Lemos Pacheco começa seu livro “Mulher Negra: afetividade e solidão” explicando o feminismo negro e o feminismo branco têm algumas diferenças, e por isso é natural que algumas pautas sejam oriundas de uma das duas fragmentações. Enquanto mulheres brancas lutavam pelo direito ao aborto, negras eram esterilizadas. Enquanto o feminismo geral se opunha à ideia do casamento tradicional, as mulheres negras ainda pautavam a solidão e a ausência de parceiros fixos, tanto homens brancos como homens negros. Essas particularidades também foram relatadas por Sueli Carneiro:

“Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas específicas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a rubrica da questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser mulher neste e naquele caso. Essas óticas articulares vêm exigindo, paulatinamente, práticas igualmente diversas que ampliem a concepção e o protagonismo feminista na sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades. Isso é o que determina o fato de o combate ao racismo ser uma prioridade política para as mulheres negras, assertiva já enfatizada por Lélia Gonzalez, “a tomada de consciência da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial”. (Sueli Carneiro — Gênero, raça e ascensão social)

Esse trecho está destacado para explicar por que a pauta é importante dentro do Feminsmo Negro. Ainda em seu estudo, Ana Cláudia observa que “(…)a preferência afetiva está condicionada por um conjunto de dispositivos duráveis (habitus) que está relacionado com a cor, sexo, geração, classe etc. Esses dispositivos são interiorizados pelos indivíduos ao longo de suas histórias e exteriorizados e rearranjados de acordo com o espaço social em que estes estão inseridos. Sendo assim, os indivíduos fazem escolhas já condicionadas pela sua cultura(…)”.

Existe uma ideia popular de que homens negros preferem mulheres loiras naturalmente. No livro Atrás do Muro da Noite — Dinâmica das Culturas Afro-brasileiras, o historiador e pesquisador negro Joel Rufino explica, de maneira grotesca, que “A parte mais óbvia da explicação é que a branca é mais bonita que a negra (…) Quem me conheceu dirigindo um Fusca e hoje me vê de Monza tem certeza de que já não sou um pé-rapado: o carro, como a mulher, é um signo”. Por mais absurda que pareça, essa passagem existe, e nela o autor comete um erro duplo: colocar mulheres em lugares de objetos feitos para definição social do homem e colocar mulheres (brancas e negras) em rivalidade, sendo as brancas mais valiosas e as negras mais baratas, segundo a desastrosa análise de Rufino. A resposta veio no artigo “Gênero, Raça e Ascenção Social”, de Sueli Carneiro:

“(…) Joel Rufino afirmará em relação à mulher branca: “O negro sempre que pode prefere a branca porque ela e mais gostosa. ‘Gostosa’ é uma categoria sexual socialmente construída: a pele clara, e mais que a pele clara, o cabelo liso prometem mais gozo que outros. A exaltação da beleza da mulher branca tem a mesma função justificadora neste caso da deserção de um determinado tipo de homem negro em relação ao seu grupo racial, sendo a mulher branca, como Joel afirma, mais bonita e mais gostosa, este homem negro encontrar-se “prisioneiro” da sedução das formas brancas, como os senhores de engenho seriam “cativos” da sexualidade transgressora de suas escravas. Mas, por outro lado, ao definir a mulher branca também como um objeto de ostentação social, Joel Rufino explicita o objetivo fundamental do seu texto: reivindicar para este tipo de homem negro, o mesmo estatuto de que desfruta o homem branco nossa sociedade. Para este homem negro, deixar de ser um pé-rapado em e “adquirir” uma mulher branca, significaria libertar-se da condição social de negro e colocar-se em igualdade em relação ao homem branco. É por pretender-se neste lugar que Joel Rufino, para sustentar suas bravatas, permite-se olhar para as mulheres do “alto” de sua hipotética supremacia de macho e tomá-las como Fuscas ou Monzas a sua disposição no mercado, tal como um senhor de engenho considerava e usava brancas e negras.”

Apesar disso, mulheres negras ativistas se queixam que, dentro do Movimento Negro, é comum que homens negros prefiram mulheres não militantes, e quando o assunto é compromisso, eles preferem mulheres brancas, como exemplifica o depoimento de uma entrevistada de Ana Cláudia Pacheco:

“Eles falam da violência contra a mulher, do padrão de beleza branco, mas no fundo eles fazem a mesma coisa, vão atrás (…) no movimento social há homens negros que namoram com negras, mas são poucos, mas quando o assunto é casar (…)porque para transar é com as mulheres negras, mas quando é para ter um envolvimento mais sério, para casar, para conviver no mesmo teto é sempre com a mulher branca.” (Mulher negra: afetividade e solidão — pg. 111)

Dentro do feminismo negro esses depoimentos são comuns. A maioria das mulheres negras ou estão solteiras há muito tempo ou saíram recentemente de relacionamentos onde eram escondidas por seus parceiros, que muitas vezes assumem namoradas dentro dos padrões logo em seguida. Também é recorrente a critica aos homens que não gostam de mulheres militantes e atuantes no meio político. Muitos se ressabiam quando suas parceiras continuam estudando.

Se sentindo mais fortalecidas, mulheres do movimento negro tendem a identificar mais rapidamente as possíveis relações tóxicas, evitando-as antes que se magoem. Ainda assim, isso não diminui o fato de que vivenciar essa realidade todos os dias é uma luta em cima da luta que pessoas negras já batalham. Abaixo temos alguns depoimentos de mulheres negras e sua realidade:

“Todo Dia 20 de Novembro é a mesma coisa: minha timeline fica inundada de homens, brancos e negros, celebrando o Dia Nacional da Consciência Negra. Tudo mundo bonito, senão fosse um detalhe: 9 em cada 10 deles estão namorando ou casados com mulheres brancas. ‘É questão de gosto!’ podem gritar alguns. Bom, primeiro que o nosso gosto não é aleatório, e sim construído desde a infância com os padrões que vemos na TV, revistas etc. (tem um artigo ótimo da Scarlett Rodrigues sobre isso:http://www.festivalmarginal.com.br/feminismo/o-amor-tem-padrao)
Segundo: quando há uma proporção tão cruel (eu estou falando de 9 entre 10! Num país em que metade da população se declara negra!) é impossível falar de “gosto”. Trata-se, isso sim, de um padrão racista. Eu sou negra e tanto eu quanto minhas amigas negras não estamos totalmente sozinhas: eventualmente ficamos com alguém, claro. E é esse o problema: tanto o homem branco quanto o negro ficam com a gente, transam e tal… até que um belo dia abrimos o Facebook e vemos que eles estão em um relacionamento sério com uma mulher branca. Não é coincidência o fato de vermos negras casadas com gringos. É mais fácil você ser valorizada lá fora do que aqui. As raríssimas amigas negras que eu tenho casadas com brancos são o que se convencionou chamar de mulher “lindíssima”. Ou seja, a gente precisa se parecer com uma modelo para ser aceita. Amigas lésbicas reclamam da mesma coisa: frequentemente são preteriadas por mulheres brancas. Então, pense duas vezes antes de repetir a frase fofa ´o amor não tem cor´!”
(E., do Rio de Janeiro)

“Mais uma carta de amor que seria mais uma vez recebida com desprezo e até mesmo com golpes violentos contra mim, foi assim meu primeiro amor e o modo como ele recebia minhas palavras de afeto. Eu, uma garotinha de 6 anos, negra com suas trancinhas bem feitas pela minha avó e já lida como gorda — de uma maneira tão cruel que nenhuma criança deveria passar. Mais cartas, mais ataques, todavia continuava mandando, não conseguia me conter, talvez por nunca ter sentido algo tão forte em toda a minha vida ou por ter a sádica esperança de que aquele garoto branco, de cabelos loiros esvoaçantes um dia escreveria uma carta pra mim recheada de amor recíproco. As únicas coisas que tive dele foi minha carta picotada na minha frente com um sorriso maldoso e um xingamento: macaca. Mesmo sendo a única garota no meu grupo de amizades a não ter um “namoradinho” ou um pretendente, e ainda sabendo o motivo para tal rejeição eu nunca me senti desencorajada a não amar/paquerar mais, pelo contrário, eu realmente nasci com uma ânsia de amor… Deve ser mal das pessoas que não tem esse direito/prazer. Acho que mesmo com 6, 10 anos, eu sempre soube o motivo para a exclusão: Porque eu era gorda e negra. Porém aquilo não me preocupava muito porque sabia que na adolescência, geralmente as coisas mudavam, e realmente mudaram, eu engordei o dobro, o triplo e continuei com a mesma estatura, ou seja, era negra, gorda e baixa. Quantas vezes eu não passei o dia me imaginando um pouco mais clara, com um cabelo liso até a cintura e magra, quantas vezes não falava sozinha criando histórias e mais histórias de como queria que minha vida fosse. A adolescência não me deu meu primeiro namorado, não me deu meu primeiro beijo, não me deu meu primeiro amor recíproco… Mas eu continuava amando. Meu primeiro amor da adolescência soube dos meus sentimentos por ele através de cartas… Eu sou uma das pessoas ridículas que Fernando Pessoa cita no poema dele, e foi a primeira vez que fui trocada por uma branca, magra e alta, quero dizer, não foi a primeira vez, mas desta vez doeu… A rejeição é uma das minhas companheiras desde sempre, eu já tive motivos para parar de amar, mas sabe algo que te completa, que te dá alguma razão pra continuar? Assim é o amor para mim. Apesar de tudo, eu tive a sorte de conhecer minha alma gêmea, mas ele decidiu que a outra metade dele seria uma alta, branca e magra, mesmo que o relacionamento durasse pouco, mesmo depois de eu prometer largar tudo e passar por cima de todos para ficar com ele, foi decidido que ficar comigo não valia a pena e mais uma vez a escolhida foi uma branca, magra e alta e a dor ainda não cicatrizou. Recentemente, descobri-me feminista, o que me fez diagnosticar o que eu venho passando por toda a minha vida: a solidão da mulher negra e gorda. Vejo muitas feministas brancas, padronizadas dizendo que querem se livrar das amarras da monogamia, que casamento é uma opressão institucionalizada e Bla… Bla… Bla. Como disse: feministas brancas, padronizadas. Essa pauta não é minha porque veja bem, meu primeiro beijo aconteceu em uma festa da faculdade e só porque o rapaz estava completamente embriagado assim como eu. Por que eu sei disso? No dia seguinte eu tive a coragem de perguntar se ele queria repetir a façanha e sobre o que tinha achado da nossa ficada e ele respondeu: Não, muito obrigado. E na outra festa lá estava o mesmo rapaz, no mesmo estágio de embriaguez me rodeando novamente. Sabe por que? Só servimos para momentos não sóbrios, para que mais tarde quando debochados por terem ficado com uma negra gorda culparem o álcool. Eu não tenho direito nem a um beijo sóbria que dirá à uma relação assumida e monogâmica, à um casamento… Por isso não me envergonho de sonhar com todas essas coisas sim, pode ser que daqui a alguns anos eu esteja da mesma maneira que estou agora, pode ser que daqui a 7 dias eu encontre o homem que será o “corajoso” de me assumir para o mundo inteiro. Sonho em caminhar de mãos dadas com alguém sim e ainda sonho com um segundo primeiro beijo… Desta vez, sóbrio. Ou talvez eu tenha nascido apenas para sonhar e não para ser amada. As palavras de Tim Maia às vezes me consolam: ‘Na vida a gente tem que entender que um nasce para sofrer enquanto o outro ri’.” (V. M., de São Paulo)

Os estudos sobre a solidão da mulher negra levam em conta o recorte social. Nas obras analisadas para esse texto podemos notar um padrão na história das mulheres entrevistadas: a maioria veio da zona rural para a cidade e encontrou na atividade de empregada doméstica a única opção de renda. Acabam preteridas também por serem pobres.

Tornar-se empregada doméstica não é uma escolha, mas uma imposição a pessoas que não tiveram oportunidade de frequentar escolas e universidades.

“Como atestam algumas autoras, o trabalho doméstico remunerado tem sido historicamente e socialmente caracterizado como uma profissão exercida em sua maioria por mulheres (gênero) negras (raça) e pobres (classe). Não é a toa que é uma profissão desvalorizada socialmente.” (Mulher negra: afetividade e solidão — p. 112).

Os corpos femininos são vistos como símbolo sexual, como já sabemos. No caso das mulheres negras a hipersexualização é acrescida ao estereótipo racista da mulata desde a época da escravidão. Vista como uma mulher sexualmente insaciável, que difere da negra porque a mulata tem “traços brancos”, uma pele mais clara e, portanto, mais semelhante à fisionomia de mulheres brancas.

Analisando os materiais e unindo essa investigação aos relatos e vivências das mulheres negras, podemos notar alguns padrões, e organizar as seguintes ideias:

  • A negra considerada “bonita” é a que tiver “traços finos”. Essa é a famosa figura da “mulata”. Mulheres negras de pele escura são, geralmente, consideradas menos bonitas.
  • A maioria das mulheres negras é pobre. Isso abre uma dificuldade dupla para relacionamentos, pois estão debaixo de dois preconceitos: racismo e preconceito de classe.
  • Mulheres negras são preteridas por homens negros e brancos, tanto por serem consideradas menos bonitas, uma vez que não se encaixam nos padrões de beleza pelas razões citadas no começo desse texto, ou por serem consideradas “menos valiosas”, como na absurda comparação feita por Joel Rufino.
  • A militância não é um facilitador de relacionamentos. Pelo contrário, a altivez (no melhor sentido da palavra) gerada pela independência política muitas vezes gera conflitos em relacionamentos.
  • Os homens parecem ter “vergonha” de suas parceiras negras. Ficam, mantém relações sexuais, mas são relutantes em assumir compromissos.

Uma das questões que podemos pensar a respeito depois da reflexão desses pontos é que: assumir uma mulher negra é, também, um ato político. Ato de afirmação contra uma sociedade racista que luta, dia após dia, pelo embranquecimento de sua população.

Conclusão

Quem chegou até esse ponto do texto pode estar se perguntando: Então o fato de eu não me sentir atraído pelas mulheres abordadas nesse texto, me torna um preconceituoso?

Eu ousaria a seguinte resposta: O fato isolado, não. Mas se recusar a refletir sobre e desconstruir isso, sim.

Sabemos que certos discursos são mais comuns nas camadas mais conservadoras da sociedade. Porém, esse texto é para questionar homens com discurso libertário que não se alinham com mulheres fora dos “padrões”. Busquei mesclar as experiências pessoais de várias mulheres com estudos que pautavam tais questões, a fim de minimizar as falas reducionistas que acusam um suposto vitimismo ou batem na tecla do “é questão de gosto”.

É preciso relembrar e repetir que não se trata de um policiamento do desejo sexual, mas um debate que precisa ser feito. Quando olhamos cada caso individualmente, encontramos exceções. Mas, ao ampliar nossa visão, compreendemos como os padrões moldam o comportamento social.

Esse material não é uma análise individual, e não pretende impor regras na liberdade de escolha. Tampouco significa que se relacionar com uma pessoa mais próxima dos padrões torna uma pessoa ruim. Além disso, o material é apenas um ponto de interrogação frente a tudo o que precisa ser questionado na sociedade. Muitos outros aspectos precisam ser debatidos, mas apenas quando perdemos os pudores de conversar sobre nossas feridas mais profundas, remexendo nossos próprios preconceitos com honestidade, estaremos dando passos reais.

Fontes utilizadas neste artigo:

Links:

http://www.antropologia.templodeapolo.net/textos_ver.asp?Cod_textos=31&value=A%20Belza%20Eg%C3%ADpcia&mit=Civiliza%C3%A7%C3%A3o%20Eg%C3%ADpcia

http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/racismo-causa-ansiedade-e-depressao-em-vitimas-diz-pesquisa

http://revistavivasaude.uol.com.br/saude-nutricao/110/o-cerebro-apaixonado-para-celebrar-o-dia-dos-namorados-260048-1.asp/

http://www.eurekalert.org/pub_releases/2014-09/uota-edi091214.php

http://transfeminismo.com/categoria-mulher-nao-se-deixe-enganar/

http://www.alegriafalhada.com.br/invisibilidade-de-direitos-das-pessoas-trans/

https://generoaderiva.wordpress.com/2013/05/05/a-genitalizacao-das-pessoas-e-dos-relacionamentos/

https://www.facebook.com/TReflexiva/posts/258279231009366

Artigos:

Por que as mulheres negras são minoria no mercado matrimonial? — Clarice Fortunato Araújo
Amor e morte: tramas afetivas do feminicídio — Maria Dolores de Brito Mota
Gênero, raça e ascensão social — Sueli Carneiro

Livros:

Mulher negra: afetividade e solidão — Ana Cláudia Lemos Pacheco
A História da Beleza — Umberto Eco
A História da Feiura — Umberto Eco
Psique&Negritude-Os efeitos psicossociais do racismo — autores diversos

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Gabriela Moura
Revista Subjetiva

Alma presa numa mente maluca e um corpo descoordenado. É o que tem pra hoje. Escritora. Feminista. RP. Desenhista. Troublemaker.