Realidade Guardada no Bloco de Notas
Isso é um amontoado de coisas não vá se perder
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Dia desses encarei Oito e Meio do Fellini como uma forma de ode–ou protesto–ao fim das minhas curtas férias, já que as cenas competem ao puro suco da imaginação, difícil definir quando é aquilo mesmo ou quando foi inventado. Essa película entra no mote daquilo que se precisa sentir, não dá pra explicar assim tão direitinho. Caso contrário, corre-se o risco de você achar chato e perder o embalo, ou a cereja do bolo que fica pro final.
“Destruir é melhor que criar quando não se cria o essencial”
“Se vocês lessem as mensagens dentro dos papéis de bombom antes de jogá-los fora, muitas ilusões seriam evitadas”
“A felicidade consiste em poder dizer a verdade sem machucar ninguém”
Desordem e improviso.
Como se a distorção de uma realidade indigesta fosse também cúmplice dos contornos imagéticos que construímos minuto a minuto em uma outra realidade criada e fictícia. Algo que não existe por si só. Falei bonito.
Mas sofro de refluxo gastresofágico, doença também conhecida como o mal dos impacientes.
É emocional.
E não tem cura.
Tudo é confusão. Tenho pânico do horror, do susto daquilo que vem sem avisar e enlaça a boca do estômago. Não é do imprevisto que eu tenho medo, não é a vida acontecendo sozinha que me tira a santa paciência, mas sim, esse monstro invisível e tenebroso que não tem nome mas tem cara e cheiro de esgoto, geral consegue sentir. Não dá pra se anestesiar do insuportável e também não dá agora pra encarar a peça rara de frente. Eu não devo ter juízo ou então me recarrego da substância errada. Por isso a ansiedade me alucina e azucrina. Deve ser isso.
Descobri que se eu uso a combinação dos óleos essenciais de lavanda com artemísia pra dormir meu sono é tranquilo e as memórias são cenas difusas de pouca graça. Mas se junto lavanda com laranja doce tudo pode acontecer. Sonho é besteira? Nada é coincidência já dizia Patti Smith. Ela também disse que precisamos sonhar todo o tipo de sonho, pra nos manter saudáveis, sãos e vivos, os sonhos.
A parada boa é que sonhar acordado ou dormindo é o melhor remédio tanto quanto o melhor oráculo.
Um delírio secreto ou telepático.
Mandam bala nesse foco no agora, enjoy the moment, mas esquecem que o pavor dos ansiosos mora no dia após dia. Numa equação simples eu explico: a realidade, a vida, é mesmo uma coisa só, então arrisco que é errado dizer que só temos o hoje quando passado, presente e futuro se alimentam dessa mistura. Vivemos o todo e esse sistema que exaure a gente no um dia de cada vez é que é o problema. Nosso calendário gregoriano já tá pelas tantas.
Outro problema é que tenho urgências de outras vidas nessa mesma. Perdi a conta de quantas mas em quantidade e confusão o carma é o mesmo.
Não me apaixonar me deixa ansiosa. Excesso de trabalho me dá vertigem. Sempre me pergunto se quando eu conseguir as duas coisas vou ter um pouco de equilíbrio. Eu tô sempre insatisfeita e todo mundo diz. Vivo imaginando outros cenários e outras vidas que eu não tenho. Se passeio em uma rua imagino como seria se eu trabalhasse em um café, ou livraria ou vendendo flores. Ou os três. Se amasse em outra língua, can you get what I feel, cariño?
Quando era criança, lá pela terceira série, tomava bronca a beça por ficar no devaneio. Certa vez, fui pega imaginando sofás e armários para o apartamento em que eu morava, quando Carla, minha professora, me veio aos berros perguntar se estávamos na questão 3 b da apostila ou se já chegávamos na 4. Eu lá queria saber das caravelas de Dom Pedro. Sofás que variavam do verde ao roxo prendiam minha atenção. Eu não sei viver no agora mas tenho um dom absurdo de criar todo tipo de roteiro futurístico. Alienígena. Alucinante. O problema é que quando chego lá me perco e as engrenagens voltam a rodar cenas que não existem. Se Federico Fellini me visse daqui, já tinha dado match e gravação.
Me sinto segura quando fico nua na frente de alguém. Sem pudor e sem nervosismo. Quando beijo esqueço todas as outras coisas. É ali que acontece uma alta dose de concentração que não me permite devanear soluções das quais não preciso. A paixão é substancial pra mim. Não o amor, essa coisa perene, tranquila, construtiva e incondicional. A paixão sim, sem as borboletas e a dor de estômago que já gasto muito dinheiro com medicamentos gastrointestinais, mas esse véu invisível que é retirado quando olhamos nos olhos de alguém que estamos afim. Afim de um abraço, de um beijo, de ouvir a respiração. De sentir cheiros que não estavam ali antes e parece que surgem quando certa química se apresenta. Um enlace. Uma vibe que bate no lugar certo. Eu vivo pra sentir isso.
Ou qualquer coisa que me tire desse estado pós e pré qualquer coisa. Sempre antes e depois jamais instante. Eu já nasci cafeinada então não adianta me chamar pra tomar um café. Aprendi a correr pra tentar desacelerar essa inconstância, essa insatisfação e essa vontade do amanhã. Não, amanhã não, meses a fio. Estou em abril pensando em setembro. Quando vem o frio e se vai dar pra ter uma lareira. Minha paciência com a falta de vontade é mínima. Coragem tem o que me falta é respirar fundo ou reiki todo dia. Como rolo compressor faço esse exercício no automático. Inspira até doer o diafragma, segura e solta.
Queria suspirar por você.
Você, essa pessoa que eu já não consigo mais lembrar das pintas ou poros, mas sei definir o contorno do rosto ou do cabelo. Que ensina a levar a vida tão mais leve baby. Viver tudo aquilo que já foi só que de um jeito diferente. Certo dessa vez. Fico sonhando toda vez com uma mesma casa que nunca vi, me esgueirando na mesma porta que nunca entrei só pra acabar em silêncio. De novo. No fundo no fundo acho que a repetição tem algo de mestre que carrega a gente pela mão pra suspender a queda.
Anota: a gente ainda cai juntos no mesmo espaço. Sideral, estelar ou de concreto. Sem dor de estômago e com sonhos de dormir e de acordar. Nessa vida. Na próxima eu já tenho outros planos.