Representação artística da chegada dos portugueses ao litoral brasileiro.

“Redescobrindo” o Brasil e a justificativa para o genocídio indígena

Pedro Vinicius Paliares de Freitas
Revista Subjetiva

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Para contornar o mediterrâneo, dominado pelos mouros, D. Manoel I adotou a rota marítima descoberta pelo lendário Vasco da Gama para chegar ás Índias. Aparelhou cerca de dez naus e três caravelas, a comando de Pedro Álvares Cabral, e ordenou o início da excursão dos portugueses para o oriente. Acidentalmente, porém, Cabral desviou para o ocidente além do necessário, e avistou o Brasil, então conhecido como Ilha de Vera Cruz, e, no glorioso dia 22 de abril de 1500, os virtuosos e corajosos exploradores, dotados de uma determinação ímpar, descobriram o novo continente, o Novo Mundo.

Eu não sei de qual forma você aprendeu sobre o “descobrimento” do nosso país pelos europeus, mas aposto que foi muito parecido com essa versão. Ah, a vitoriosa excursão cabralina, o sucesso de uma improvável empreitada, guiada pelo imortal espírito livre dos exploradores lusos através dos mares. Aliás, mar, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal? Por te cruzar, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram? Quantas noivas ficaram por casar para que fosses de Portugal, ó mar? Será que valeu a pena? Bom, quem quer passar do Bojador, tem que passar além da dor. Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, né?

Para entender melhor porquê aprendemos desta forma, é preciso ir mais fundo, entender um pouco mais sobre a colonização, e como ela influenciou a nossa educação. É preciso “redescobrir” o Brasil, o processo de invasão e colonização do continente pelos europeus, assim como o genocídio dos nativos da América, genocídio esse, não só dos povos, mas de sua cultura, economia e organização social.

  1. Eurocentrismo

Eurocentrismo corresponde a uma expressão que emite a ideia de que a Europa e seus elementos culturais são referência no processo de construção das sociedades ocidentais modernas. Como se apenas a cultura européia fosse real e verdadeiramente útil, negligenciando as formações culturais fora de sua influência. Um bom exemplo disso é a separação do mundo entre ocidente e oriente. Enquanto o ocidente, praticamente em sua totalidade, foi colonizado pelas potências europeias do século XV e XVI, o oriente sofreu menor influência do Velho Mundo, então se destaca do ocidente, por não se basear na cultura europeia como única e verdadeira. Não é nenhum absurdo pensar dessa forma, pois segundo o professor associado do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Mario Bruno Sproviero, essa separação começa a se formar e se consolidar a partir da Pré-História, por questões linguísticas e religiosas, ou seja, culturais.

O Eurocentrismo, então, é construído a partir da imposição da cultura européia sobre as outras culturas existentes nas terras invadidas e colonizadas. Através da imposição de seus cultos religiosos, de sua estrutura educacional, da forma de produção e acumulação baseada no mercantilismo, e, principalmente, da maneira violenta pela qual os povos do novo continente foram subjugados pelos europeus. O resultado disso foi o genocídio indígena e a consequente supressão de sua cultura. Assim, criou-se a estrutura da sociedade brasileira, um produto cultural da Europa e de seus colonizadores, baseada na escravidão, na violência e na concentração de riqueza e terras nas mãos de poucos.

O aspecto mais importante, talvez, seja o religioso. É importante lembrar que uma das prioridades dos portugueses em solo latino-americano foi fazer a primeira missa do continente, na tentativa de começar o projeto de evangelização e catequização dos índios, que seria, posteriormente, responsabilidade da Companhia de Jesus, que chegou ao Brasil em 1549. A atuação da Companhia de Jesus tem papel fundamental na supressão da cultura dos nativos, principalmente através da evangelização, catequização, demonização dos cultos religiosos indígenas e imposição da língua portuguesa.

E já que estamos falando em prioridades, nada mais justo que tratar, a seguir, da chegada dos europeus ao Brasil.

2. A chegada ao novo continente

É importante ressaltar que essa conclusão varia a partir da fonte consultada, mas, de acordo com Boris Fausto, historiador e cientista político da USP, pouco importa se o destino da esquadra cabralina que partiu de Portugal dia 9 de março de 1500 tinha como destino as Índias ou o novo continente, pois, segundo ele, isso se encaixa mais como curiosidade histórica, e o que realmente importa é entender o processo histórico, não suas curiosidades.

A chegada dos portugueses ao litoral brasileiro foi no dia 22 de abril de 1500, cerca de um mês e meio de viagem atravessando o Oceano Atlântico. Não vamos nos prender ao mito do descobrimento, é loucura pensar que a chegada dos portugueses foi gloriosa, nos moldes de conquista, como muitos livros e produtos da cultura pop representam.

Após um mês e meio no mar, no ano de 1500, podemos apenas imaginar qual era a situação dos portugueses que chegaram ao litoral. Muito provavelmente famintos, exaustos, doentes e sem apresentar nenhum perigo real aos indígenas. Segundo Darcy Ribeiro, os portugueses, quando desembarcaram, fediam. A hipótese mais aceita é a de que os portugueses foram acolhidos e auxiliados pelos indígenas do litoral, pois ao chegar da Europa em uma terra desconhecida, é evidente que não sabiam nem como se alimentar por aqui.

3. As “nações” indígenas presentes no território e sua relação com ele

Quando os europeus chegaram ao litoral, se depararam com uma população ameríndia bastante homogênea em termos culturais e linguísticos, distribuídos entre dois grupos : os tupis-guaranis e os tapuias. É importante ressaltar que os tupis e os guaranis ocupavam lugares distintos, e só existe essa junção “tupi-guarani” pela semelhança linguística e cultural entre os dois povos.

Mas, além disso, existiram centenas de “nações” indígenas independentes (estima-se que haviam cerca de 1000 delas), como os carijós, os tupiniquins, os tamoios, aimorés, tupinambás, etc. Algumas dessas nações tinham relações com os povos andinos, e até alguns da América Central.

Os aimorés e os tupinambás se destacavam especialmente pela eficiência militar e pela rebeldia em relação à invasão portuguesa. Tanto que, quando a Coroa Portuguesa publicou a primeira lei que proibia a escravização dos índios, em 1570 (o que, definitivamente, não resolveu o problema da escravidão dos nativos), só os aimorés foram especificamente excluídos da proibição.

A falta de dados, por dificuldade de obtenção, limita o estudo de quantos indígenas existiam no território do que hoje é conhecido como Brasil. As estatísticas variam muito dependendo das fontes, e são tão variados como 6 a 40 milhões para todo o território e cerca de 5 milhões só para a Amazônia brasileira.

Os tupis, por exemplo, praticavam a caça, a pesca, a coleta de frutas e a agricultura. Seria impreciso dizer, por exemplo, que eles estavam preocupados com a preservação ou em reestabelecer o equilíbrio ecológico das áreas ocupadas. O ponto a ser observado é que eles tinham uma relação diferente com a natureza e com a terra.

Essa relação se dava pela subsistência. A terra assume um papel de identidade e de pertencimento no imaginário indígena, fazendo parte do ser, da coletividade. Por isso, a relação do autóctone com a terra é diferente, baseada no respeito e na subsistência, sem assumir o caráter exploratório europeu e mercantilista.

[…] Terra, para o índio, tem um valor superior ao da simples propriedade individual. Ela é a base material da vida indígena, sua morada, local onde são desenvolvidas suas relações familiares, do qual retira seu alimento e os recursos para construir suas casas e desenvolver suas técnicas e artefatos, em que se propaga sua religiosidade e cultura.

Assim, os colonizadores, ao privarem os índios de sua terra, contribuíram para a destruição de instituições econômicas e culturais desses povos.

4. A invasão e os primeiros movimentos em direção à sobreposição cultural

Um dos primeiros movimentos de explícita invasão do território e sobreposição à cultura indígena foi a primeira missa realizada no Brasil. No primeiro domingo em que estiveram em litoral brasileiro, os portugueses organizaram uma missa no território, com altar, cruz, a cerimônia completa.

Existem alguns relatos portugueses desse acontecimento. Segundo eles, alguns índios acompanharam a cerimônia, sentaram com os portugueses, beijaram a cruz, provavelmente como forma de respeito aos povos recém chegados ao continente. Os portugueses, porém, tinham outra forma de enxergar. Classificaram os índios que participaram do culto como “fáceis de evangelizar”, “dóceis”, “volúveis”, “frágeis”. E os que não se juntaram à cerimônia cristã como “selvagens”, “rebeldes”, “difíceis”.

Esse tipo de classificação não era apenas no âmbito religioso. Qualquer nativo que não aceitasse de bom grado a invasão do território, a escravidão, a evangelização e a cultura europeia, era considerado “selvagem", “não-digno da civilização moderna”, assim como aconteceu com os aimorés. Todos os relatos portugueses sobre os indígenas tangiam esse conceito, desde os mais primitivos até os relatos dos naturalistas da época. E foi assim que surgiram as guerras justas.

O conceito de guerra justa é aplicado quando alguma guerra é moralmente aceitável. Nesse caso, a coroa portuguesa considerava guerra justa toda aquela que era promovida contra o índio que não se submetia à fé católica, escravidão, ou que se mostrava resistente à invasão.

Com o tempo, as diferentes culturas das nações indígenas foram sendo engolidas pela homogeneidade da cultura europeia e do cristianismo, através dessa supressão e do genocídio cultural. Mas o genocídio cultural não foi a única herança da invasão portuguesa.

Exploração de recursos naturais, caça de animais silvestres e de indígenas, trocas injustas, violência, e, principalmente, escravidão e a contaminação dos indígenas com as doenças europeias, para as quais os nativos não tinham anticorpos marcaram as primeiras décadas de invasão.

5 . A doutrina do descobrimento

Sob a Doctrine of Discovery, ou Doutrina do Descobrimento, os portugueses reivindicaram e colonizaram as terras dos povos originários. Essa doutrina se baseia em argumentos jurídicos empregados para pleitear a prioridade da terra, permitindo que os europeus recém-chegados adquirissem direitos reais de propriedade sobre as terras e sobre os nativos, mesmo sem seu consentimento.

A Doutrina do Descobrimento tinha ideias pautadas na superioridade europeia e cristã sobre as demais culturas do resto do mundo. Tal Doutrina é uma das mais antigas do Direito Internacional, e foi criada especificamente para reger práticas europeias e fundamentar juridicamente a dominação europeia sobre outros povos e territórios.

Atrelados à Doutrina do Descobrimento, estão outros dois princípios do Direito Internacional da época, oriundos do latim, o Terra nullius e o Uti possidetis.

Terra nullius significa, literalmente, terra de ninguém. Este princípio refere-se a um território que nunca foi submetido a soberania de qualquer estado. Assim, a soberania sobre o território pode ser adquirida através da ocupação.

Uti possidetis refere-se ao princípio que decorre da ocupação definitiva do território, da ocupação em que o Estado exerce conquista sobre um território que não pertence a ninguém (Terra nullius), nem a outro estado ou membro da comunidade internacional reconhecida pelos europeus . Trata-se de uma forma de aquisição de território.

Somado a isso, ao realizar procedimentos e rituais religiosos, segundo o Direito Internacional da época, os portugueses também adquiriam legitimidade para pleitear de forma legal as terras e os povos.

Dessa forma, ocorre a ocupação territorial, majoritariamente baseada na violência, escravidão e guerra contra os nativos. Em seguida, o nascimento do Estado brasileiro, como consequência da expansão territorial, calcada, principalmente, na exploração capitalista/mercantilista europeia.

6. O extermínio

Através do advento das guerras justas e da doutrina do descobrimento, os portugueses promoveram o extermínio dos povos indígenas. Alguns desses casos entraram para a história de forma mais marcante, e boa parte desses povos, hoje, são considerados extintos, com um prejuízo incalculável para a humanidade, ao perder suas vidas, cultura, história e conhecimento.

Os caetés, por exemplo, eram povos indígenas com cerca de 75 mil indivíduos. Por serem “aliados” dos franceses, foram acusados injustamente de praticar canibalismo contra o primeiro bispo do Brasil. Essa acusação se tornou justificativa para o extermínio dos caetés, que se iniciou em 1560, e foi legitimada não só pela Coroa Portuguesa, como, também, pela bula papal. Não resta dúvidas de que o assassinato do bispo foi só um subterfúgio para deflagar um genocídio contra os verdadeiros donos da terra.

Os tupinambás, também conhecidos pela organização e eficiência militar, sofreram o mesmo fim, sendo considerados extintos desde o século XVII.

Um pouco mais tarde, chegando ao final do século XIX, houve o boom da borracha na Amazônia. Isso foi um desastre para as tribos que viviam na região, pois, segundo estudos e estatísticas, cerca de 90% da população indígena que ocupava a área foi morta, por doenças e violência. Além disso, os relatos contam que os exploradores da borracha usavam a população indígena da área como mão-de-obra escrava.

Por volta de 1920, os conflitos se atenuaram entre os seringueiros e uma etnia indígena conhecida como Cinta Larga. Pois seringueiros e garimpeiros buscavam, além de borracha, ouro e diamante no território dos Cinta Larga, que, evidentemente, ofereceram resistência e não se intimidaram frente às ameaças dos exploradores. Essa sucessão de fatores levou ao massacre que ficou conhecido como Massacre do Paralelo 11.

O Massacre do Paralelo 11 ocorreu em 1963, no estado do Mato Grosso, onde a empresa Arruda, Junqueira & Co coletava borracha. O Massacre foi planejado pelo chefe da empresa, Antonio Mascarenhas Junqueira, que contratou aviões para atacar a aldeia dos Cinta Larga com dinamite, e homens para invadir a aldeia com metralhadoras, e matar os sobreviventes após o bombardeio. Apenas dois aldeões sobreviveram ao ataque.

Esse e outros relatos de violências e crimes contra os indígenas estão em um documento intitulado Relatório Figueiredo, produzido no ano de 1967. O relatório possui mais de sete mil páginas e descreve os casos de violência contra os índios brasileiros ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960.

Além desses povos, muitos outros foram extintos e dizimados pelas ações dos portugueses, da igreja, dos bandeirantes, e, posteriormente, dos próprios brasileiros. Ao comparar a estimativa inicial da quantidade de habitantes indígenas no território brasileiro com a atual, temos uma diferença gritante, pois, segundo o IBGE de 2010, atualmente, o Brasil conta com cerca de 817,9 mil indígenas. Desse total, 315 mil vivem em zona urbana, e 502 mil em zona rural. Estima-se que em 1500, existiam cerca de 1000 povos indígenas distintos. Atualmente, esse número é de 225.

7. Reconhecimento do genocídio

É importante frisar, antes de qualquer outra coisa, que, apesar dos consecutivos eventos genocidas marcarem presença na história da humanidade, foi somente a partir da segunda guerra mundial que o termo foi reconhecido pela comunidade internacional e pelo Direito Internacional. A concepção jurídica de genocídio é nova, contemporânea.

Em 1944, em meio a segunda guerra mundial, o jurista polaco Rafael Lemkin, lançou, em Axis Rule occupied in Europe, as sementes para que o genocídio fosse qualificado como fato antijuridico e crime contra a humanidade. Nessa obra, Lemkin cria um neologismo oriundo da ligação das palavras geno, do grego, raça, e cídio, do latim, matar. Ele fez isso para designar a destruição de uma nação ou de um grupo étnico, ou seja, genocídio.

Para Lemkin, o genocídio correspondia a um plano coordenado para destruir os alicerces fundamentais da vida de grupos ou etnias, na intenção de extermina-los. De certa forma, Lemkin já enxergava o genocídio como um crime internacional, mesmo que Direito Internacional da época não o reconhecesse como um crime internacional. Ele acreditava nisso, pois, em sua concepção, o genocídio sempre é praticado pelo Estado, ou grupos apoiados pelo Estado, também porque causa tenções internacionais e conduz a guerras, e, para concluir, merece ser julgado mediante a cooperação internacional, e perseguido pelo princípio da justiça universal.

Assim, em 1946, a Assembleia das Nações Unidas reconheceu o genocídio como crime internacional, explicitando a necessidade de punição para os responsabilizados. No Brasil, a medida foi promulgada em 1952. Mas, mesmo após o Estado brasileiro aderir à obrigação internacional, o genocídio continuou a ser perpetrada em território nacional, como podemos observar no Relatório Figueiredo e nos constantes ataques contemporâneos às populações indígenas do nosso país.

8. Considerações finais

O não existia, o Brasil é uma invenção. A invenção do Brasil nasce exatamente da invasão, inicialmente feita pelos portugueses, continuada pelos holandeses e franceses, sem parar. As invasões nunca tiveram fim, nós estamos sendo invadidos agora.

Agradeço, primeiramente, a todo e qualquer leitor que se dispôs a terminar essa extensa leitura, e espero que eu possa ter contribuído de alguma forma com a sua concepção sobre a invenção do que hoje nós conhecemos como Brasil, e sobre o preço que foi pago para que o Estado brasileiro fosse estabelecido.

Para a construção desse artigo, utilizei as seguintes referências e fontes :

Todos as referências utilizadas estão disponíveis para leitura/visualização ou compra online.

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Pedro Vinicius Paliares de Freitas
Revista Subjetiva

Estudante de Ciências Sociais na Unicamp. Leitor de Filosofia, Sociologia, História e Romances. Interessado em política.