“Retrato de uma Jovem em Chamas” e “O Farol”: O tempo, a ambientação, a mitologia

Carlos Massari
Revista Subjetiva
Published in
6 min readJan 17, 2020
Retrato de uma Jovem em Chamas, de Céline Sciamma

(Esse texto contém spoilers sobre os dois filmes em questão)

Uma pessoa viaja de barco em direção a um lugar isolado e desconhecido. Ao chegar, terá um trabalho com tempo contado para terminar, um pagamento e uma volta para casa. Para realizá-lo, precisa lidar com uma pessoa misteriosa que parece já ter dado dor de cabeça a outros que tiveram a mesma função.

Essa é a premissa de dois dos filmes mais aclamados de 2019, ambos atualmente em cartaz no Brasil: Retrato de uma Jovem em Chamas, da francesa Céline Sciamma, e O Farol, do norte-americano Robert Eggers.

Por mais diferentes que os dois filmes possam ser — afinal, um é um romance, o outro um terror -, eles guardam muitas outras pequenas semelhanças. E nessas semelhanças descobrimos os porquês de estarmos falando sobre uma obra-prima e um bom filme que infelizmente não alcança todo o seu potencial.

  1. O Tempo

Em Retrato de uma Jovem em Chamas, Marianne tem cinco dias para pintar um retrato de Heloise. A obra será enviada para Milão e avaliada por um pretendente da moça, que decidirá se irá ou não se casar com ela. Elas se apaixonam e a contagem desses dias se torna um tormento pelo fato de que o amor não pode ir além dessa pequena marcação temporal.

Em O Farol, Ephraim precisa passar trinta dias cuidando de um velho farol ao lado de Thomas, o zelador que nunca deixa o local. A pessoa a fazer o mesmo serviço anteriormente morreu em circunstâncias misteriosas. Delírios e terror começam a tomar conta desse ambiente insalubre e a contagem desses dias se torna um tormento pelo fato de que conseguir ir embora talvez seja uma utopia.

O Farol, de Robert Eggers

No caso do filme de Sciamma, o tempo é inimigo. A cada dia, o fim do amor está mais próximo. A contagem dele é a areia que escorrega pelos dedos lentamente. O que é vivido deve durar para sempre, mas isso não é possível. Já no de Eggers, ele é um amigo, mas cada ponteiro leva uma eternidade para se mover. O fim do terror está sempre distante.

A cineasta francesa marca a passagem do tempo de maneira brilhante. Nunca existe uma citação verbal sobre quantos dias já se passaram, mas as imagens te fazem saber perfeitamente essa contagem. O trabalho é feito com dia e noite, com luz e sombra. Como se cada quadro fosse uma pintura diferente.

O Farol tem a particularidade de que o clima de terror e isolamento leva à loucura e, consequentemente, à perda de noção de tempo. Porém, para que isso faça sentido, seria necessário ter uma contagem eficiente no início do filme. Às vezes, é citado verbalmente o quanto já se passou, mas esse é um recurso bastante pobre quando comparado ao que Sciamma é capaz de fazer.

Para o grande Andrei Tarkovsky, fazer cinema é esculpir o tempo. Sciamma faz de sua escultura uma obra de arte, assim como as que são retratadas durante o filme. Eggers não demonstra a mesma capacidade.

2. A ambientação

Retrato de uma Jovem em Chamas e O Farol são dois filmes atmosféricos. É preciso construir uma ambientação que cresce seu tom no decorrer dos minutos: duas pessoas se apaixonam lentamente, o terror não nasce do nada.

Aqui, o olhar feminino de Sciamma se destaca. Confesso que, ao ler que seu filme se tratava de “um tórrido romance”, esperava algo na linha de Azul é a Cor Mais Quente, com longas e quase explícitas cenas de sexo. Mas o que acontece é justamente um investimento pesado em tensão sexual, em construção dos sentimentos de amor e de desejo, em detrimento ao sexo em si.

Sciamma cria muitas cenas com tensão sexual transbordando da tela. Que fazem o público pensar em quando aquelas mulheres finalmente vão dar o próximo passo. São provocações, detalhes visuais, diálogos, olhares, aproximações. Tudo é minuciosamente criado.

Trata-se de um filme que trabalha muito com gestos. E cada gesto é visto na tela e no quadro pintado por Marianne. Existe uma obsessão com a posição das mãos, com a inclinação do queixo, com a consciência corporal que faz parte não só do que era a própria pintura da época, como também é reproduzida pelo trabalho de mise en scène de Sciamma.

Um filme de gestos, de olhares e de cores.

A riqueza de detalhes visuais é o que faz de Retrato de uma Jovem em Chamas um filme praticamente perfeito. Enquanto isso, Robert Eggers se preocupa mais com uma histeria imagética que muitas vezes tem um efeito menos potente do que o desejado.

A ambientação de O Farol é feita por cortes rápidos, imagens grotescas, personagens gritando, um uso acumulado de álcool e de imersão no desconhecido. O maior acerto atmosférico do diretor é reproduzir perfeitamente o descontrole, a espiral de loucura após uma junção entre bebedeira, perda de noção de tempo e isolamento. Porém, isso acontece apenas em um período mais avançado do filme.

Eggers tem a seu favor uma excepcional fotografia, merecidamente indicada ao Oscar. Porém, muitas vezes o filme soa dirigido em excesso, o que não acontece com Retrato de uma Jovem em Chamas mesmo com a minúcia visual da obra francesa sendo muito maior.

Em O Farol, existe uma habilidade enorme dos atores (Willem Defoe e Robert Pattinson fazem incríveis trabalhos) e da equipe técnica do filme para criar uma ambientação que o filme em si não parece capaz de fazer. O terror crescente não soa natural, intrínseco, mas sim criado artificialmente por esmero técnico. E esse é um grande problema.

3. A mitologia

As semelhanças entre os dois filmes continuam pelo fato de que ambos traçam paralelos entre os seus enredos e um mito grego: O de Orfeu e Eurídice, no caso de Retrato de uma Jovem em Chamas, e o de Prometeu, no de O Farol.

Esse é o único ponto no qual O Farol apresenta uma sutileza um pouco maior (pelo menos até a sua última cena). O paralelo fica nas entrelinhas. E é possível fazer uma análise até mais profunda trazendo todo o contexto do filme para os dias atuais, algo envolvendo o trabalho árduo e o capitalismo, a luz e o lugar do patrão. Mas essa não é uma teoria minha e não vou me aprofundar.

Mas, no final, o grande erro de Eggers é escancarar o seu mito e dar ao seu protagonista o mesmo final que Prometeu. O mistério some, o que era aberto para interpretação deixa de ser.

O mito de Prometeu é central em “O Farol”

Retrato de uma Jovem em Chamas não tenta ser um filme enigmático em momento algum, e por isso o paralelo mitológico está sempre claríssimo, sendo inclusive citado pelas personagens. A história de amor impossível e de perda se repete.

O mito aqui tem uma camada um pouco mais profunda: O amor entre Marianne e Heloise sempre fora impossível, e por isso a memória era tudo o que poderia sobrar. Orfeu escolhe ter a memória de Eurídice a continuar vivendo aquele romance, mas isso não é possível para as personagens do filme. Elas sempre estiveram fadadas a repetir a tragédia.

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Eu assisti aos dois filmes no mesmo dia, na mesma sala de cinema, um em sequência ao outro. Por mais que O Farol seja um bom filme, competente em vários aspectos, a comparação com Retrato de uma Jovem em Chamas faz muito mal a ele.

Céline Sciamma teve um esmero visual incrível sem deixar com que sua presença transparecesse. Seu filme não sobe de tom em momento algum, nem deixa escapar toda a sua precisão, toda a sua capacidade de se assemelhar à arte da época que retrata, todo o seu perfeito trabalho com o tempo.

Robert Eggers fez um trabalho melhor em seu filme anterior, A Bruxa, cuja ambientação tem uma trajetória mais uniforme, chegando a um final também mitológico, mas de certa forma surpreendente. O Farol tem falhas repetidas que comprometem bastante o resultado final.

Retrato de uma Jovem em Chamas (Cèline Sciamma, França, 2019) — *****
O Farol (Robert Eggers, EUA, 2019) — ***

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Carlos Massari
Revista Subjetiva

Jornalista, roteirista, escritor. Falo aqui sobre cinema e os esportes que não falo em outros lugares.