Só o pó da rabiola

Rafael Moreno
Revista Subjetiva
Published in
4 min readOct 24, 2020

Sempre curtir ler. Se fico dois, três meses sem um livro na mão, já bate aquela vontade louca de voltar para os livros. Funciono mais ou menos assim: demoro pra engatar, mas quando engato, mano do céu, é leitura atrás de leitura até a próxima freada.

Ah, o mesmo vale para a música. Então não deve ser novidade se eu contar que tô zerando alguns álbuns de rap, certo? Aliás, acredita que só fui escutar Travis Scott e Tyler, The Creator esses tempos?

Nos dias que não consigo parar para ler ou ouvir algum som, me pego pensando: há tanta coisa a aprender em tão pouco tempo.

Muito desse sentimento de frustração vem da minha vontade em querer conhecer e aprender cada vez mais. Porém, tenho pra mim que não existe outro jeito senão: ler e ouvir sempre que tiver um tempinho. No intervalo do almoço, no término do trabalho, naquela meia horinha antes de dormir.

Aqui o segredo não é a intensidade, e sim a constância. Mesmo não fazendo com o rigor que aparento ter.

Mas qual seria a dificuldade em optar pela constância ao invés da intensidade?

O que pega é que aprendemos que o dia só valei a pena se ele tiver cada segundo preenchido com alguma atividade. Condicionamos a nossa satisfação somente quando, em nossa cabeça, produzimos o máximo que esteve em nosso alcance.

Somos super produtivos e assim nos exigirmos ser.

Boa parte disso vem baseado na falácia de que, tudo aquilo que não conquistamos se deveu a não termos nos esforçado o bastante.

Sabe como é né? Os algoritmos do Youtube te leva para vídeos de pessoas que prometem uma vida luxuosa, sem preocupação e esforço, com a única condição de seguir os passos que, gratuitamente lhe é oferecido. Isso quando essas mesmas pessoas não gastam uma fortuna para te encher o saco a cada minuto de propaganda em qualquer vídeo de gatinhos que queira ver.

Para e pense, é muita preocupação e esforço pra te convencer de uma vida sem preocupações e esforço, não é mesmo?

Perco as contas de quantos vídeos ou matérias já vi/li sobre leitura dinâmica e em como você pode ler livros gigantescos num só dia.

Quem nunca assistiu aquelas promessas de cursos que te prometem ensinar em uma semana tudo aquilo que você não conseguiu aprender durante toda a sua vida?

Quer aumentar a sua renda, sair do aperto, ganhar quatro dígitos em uma semana? É só apertar no botão azul que aparece no canto da tela.

Tão simples, como é que a gente nunca percebeu isso?

Aliás, assistir a qualquer vídeo no Youtube na velocidade 1.5 é tendência.

Repare no conflito de sentimentos: você sente que precisa se esforçar ainda mais. Com isso, encontra pessoas e conteúdos que te prometem atalhos para o sucesso e, ao mesmo tempo, se questiona se o seu esforço é realmente tão grande assim, até porque, se é tão fácil, alguma coisa de errado você está fazendo, não é mesmo?

Afinal de contas, como é que ainda não encontrei um tempo para absorver todos esses conteúdos se eu sinto meu esforço diário?

E é nesse sentimento que quero chegar.

Estamos cansados.

Não bastasse enfrentarmos um caos político, econômico, social, ambiental e de saúde, ainda apontam pra gente dizendo que “dá sim, claro que dá pra chegar onde cheguei, basta se esforçar”.

Corta a cena.

Promessas econômicas vazias, reformas que prejudicam toda a classe trabalhadora, omissão dos nossos representantes frente a maior pandemia do século, destruição das nossas florestas, cerrados e pantanais, precarização do trabalho, desemprego, desinformações, violência policial, e, agora, o início das campanhas eleitorais municipais.

Além de tudo isso, você deita a cabeça no travesseiro com o sono desregulado frente a nova rotina imposta pelo Covid-19 e pensa que mais um dia passou e esse dia se pareceu com tantos e tantos, sem nenhum tipo de mudança.

Estamos cansados, exaustos ou, como diria meu pai, só o pó da rabiola.

A verdade é essa.

São tantas batalhas diárias importantes para se travar. Herdamos o mundo e com ele todos os problemas e conflitos para enfrentar e que precisam ser enfrentados. Temos tantas preocupações e desafios que, definitivamente, não devem ser ignorados e nem colocados para “segunda-feira eu começo”.

Não tô aqui pra passar nenhuma fórmula secreta ou um curso para alcançar a elevação espiritual em sete dias, com aulas online gratuitas de motivações onde você pode ter tudo o que quiser, bastando acreditar e ter força de vontade, que o mérito vem.

Longe disso. Bem longe disso.

O que posso compartilhar com vocês é uma frase que meu tio, que tem idade de avô, sempre me diz:

“pra que a pressa se, andando, chego no mesmo lugar e ainda por cima descansado?”

Talvez a constância seja tão importante quanto a intensidade.

Talvez nosso cansaço reflita todas as informações e impulsos que recebemos a cada segundo de todas as redes sociais.

Talvez estejamos cansados e não encontramos, ou nos negamos a encontrar, um tempo para descansar e seguir em frente.

De qualquer maneira, tire um tempo e descanse.

Assim cê volta firme e forte pra nossa luta diária.

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