Saídas temporárias: informação em tempos de eleições

Aquele texto pra você jogar no grupo de família do zap

Suzane Jardim
Revista Subjetiva
8 min readOct 1, 2018

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Um colega veio me perguntar se eu tinha um texto que explicava qual a finalidade das “saidinhas” da prisão. Procurei, procurei e não achei nada que não estivesse com uma linguagem totalmente jurídica e com uma análise voltada apenas à interpretação da Lei de Execuções Penais, sem ser voltada para o cidadão comum. Assim sendo, explico eu mesma:

É o mesmo todos os anos — chega o Natal, Páscoa, dia das Mães ou dos Pais e lá estão as matérias jornalísticas “avisando” a população sobre o fato de que milhares de presidiários estarão nas ruas graças a famosa “saidinha”.

Geralmente são matérias alarmantes sobre 20, 30 mil BANDIDOS HORRÍVEIS que estarão nas ruas, praticamente só esperando você e sua família passar pra roubar seu cachorrinho e tornar suas vidas um inferno. Todas essas matérias costumam vir seguidas de grande revolta por parte de uma população que entende as saídas como um privilégio desnecessário, um presente dado a quem não merece e que ainda põe nossas vidas em risco.

É sabendo da existência do medo popular e do impacto da veiculação de tais notícias que vemos em todas as eleições uma série de candidatos prometendo acabar com essa “pouca vergonha”.

“Tolerância Zero”

Na imagem acima se vê um trecho de um folheto político de distribuição gratuita. No texto, além de uma preocupação bizarra sobre a vida sexual dos detentos (só isso explica, afinal o Estado em si não gasta nada deixando os cara transar às vezes, então nem o discurso do “dinheiro público jogado fora” funciona aqui), há a promessa de fim das saídas e indultos, assim como do fim da progressão das penas.

Na verdade parece que o que se promete é destruir qualquer contato do detento com o mundo exterior — vai ficar encarcerado até o final da pena “pronto e acabou”. O cidadão que recebe a mensagem se sente automaticamente mais seguro e crê que a promessa de “tolerância zero” vêm para colaborar com as garantias de segurança e diminuição do crime — se o bandido está na cadeia e nunca vai sair de lá, então não tem como ser vítima dele.

Tais promessas não são exclusivas de um ou outro partido — levando em conta apenas as últimas eleições, promessas similares estão sendo feitas por candidatos como Geraldo Alckmin, Jair Bolsonaro e João Dória (candidato ao governo do estado de São Paulo), pelo Partido Novo, uma série de candidatos a deputados, além de ser uma das grandes plataformas de movimentos maravilhosos como o MBL. Entretanto, se são tão ruins, porque existem as saídas? E porquê ninguém acabou com elas antes? Como é possível que se permita tal “absurdo”?

Pensando nessas dúvidas, na falta de informação promovida pelas mídias e nas falácias do debate político em tempos de eleição, tento trazer aqui algumas respostas para as questões mais comuns sobre o assunto. Vamos lá?

1 — “Mas isso é um absurdo! Não se deve permitir que um detento volte às ruas antes de cumprir a pena! Ele pode cometer mais crimes e colocar nossas vidas em risco!”

Bem, há uma série de possibilidades de cumprimento de pena de prisão. No Brasil, é oficializado o regime de progressão. A premissa é básica: todos os detentos irão sair da prisão um dia — não há como evitar tal fato . Claro que você pode ser do tipo que deseja pena de morte até pra quem foi preso por roubar leite ninho e partindo desse principio então ok, ninguém precisa sair da prisão, mas aconselho que você procure um psicologo porque essa paixão por viver na Idade Média tá entrando no nível patológico (quem avisa, amigo é). Mas, retomando: diante do fato de que os detentos sairão da prisão um dia, é feita uma progressão da pena onde o detento passa de um regime totalmente fechado para regimes menos rigorosos de encarceramento. Entre as possibilidades menos rigorosas está o regime semi-aberto, modelo que permite as tais saidinhas que causam tanto pânico e repulsa. Entretanto, o caso é que tal medida existe EXATAMENTE para evitar que novos crimes aconteçam, diminuindo assim a reincidência.

Como? É simples:

Atualmente a falta de vínculos de detentos com a sociedade é um dos grandes motivos de reincidência. Muitos presos perdem contato com seus familiares, amigos e com sua comunidade durante o tempo que passam na prisão e, desse modo, ficam sem um lugar para voltar quando suas penas acabam.
Quando isso acontece, as chances de que o ex-detento acabe cometendo outros crimes e volte para a prisão aumenta consideravelmente — boa parte dos índices de reincidência dialogam com o fato de que os ex-detentos foram largados no mundo sem grandes alternativas ao final da pena. Além dos índices de reincidência, boa parte das pessoas em situação de rua tem também uma ficha criminal — são pessoas que cumpriram pena de prisão em algum momento da vida e que, sem vínculos, tiveram nas ruas o único abrigo.

Nesse sentido, o regime semi-aberto e as saidinhas são medidas que tentam integrar o detento a sua comunidade de origem garantindo assim que exista vínculos fora da prisão. Tal medida não é questão de benevolência com criminosos — é simplesmente um método para evitar que o ex-detento não volte a cometer crimes quando retornar à sociedade.

2 — “Teremos vários psicopatas descontrolados na rua! É um tragédia!”

O direito à saída temporária só é concedido ao preso que cumpre pena em regime semi-aberto e que até a data da saída tenha cumprido um sexto da pena total se for primário, ou um quarto se for reincidente. Tem que ter boa conduta carcerária, pois o juiz, antes de conceder a saída temporária, consulta os diretores das prisões pra conferir se existem ocorrências e advertências na ficha do sujeito. Uma vez que se cumpre os requisitos mínimos, o detento pode usufruir da saída temporária, que podem ser concedida cinco vezes ao ano. Assim sendo, dificilmente um “psicopata descontrolado” desses que vemos em filmes ruins irá deixar a prisão para te amedrontar na Páscoa, primeiramente porque pessoas com psicopatia comprovada não cumprem pena comum, mas sim medidas de segurança nos Hospitais de Custódia, os “manicômios judiciais”, e segundo, porque há um processo onde a “periculosidade” do indivíduo é levada em conta. Não há quem receba esse direito sem avaliação.

3 — “Ah, mas eles vão ficar jogados na rua me fazendo correr risco!”

Na verdade, para ter direito a saída o detento precisa apresentar no mínimo um endereço e ter nomes de familiares ou amigos que o recebam. O juiz irá conferir e, comprovado o vínculo exterior existente, permitir a saída. Ou seja — ninguém recebe a saída temporária para passar um Natal literalmente na rua ou parado na sua esquina, fique tranquilo.

Ah, sim! E o detento perde o direito de suas saídas caso volte minimamente atrasado para a prisão sem qualquer justificativa plausível ou seja pego cometendo qualquer tipo de delito, contravenção ou conduta proibida(como frequentar bares, boates, embriagar-se, envolver-se em brigas e andar armado) então não tem um “ah, saiu e matou 10 no Dia das Mães e depois matou mais mil no Dia dos Pais”. Só não dá, para.

4 — “Mas muitos detentos fogem da prisão e cometem crimes durante as saídas!”

De fato existe um número de detentos que não retorna à prisão, entretanto esse número não têm sido grande o suficiente para justificar o fim da medida — na média dos últimos 10 anos 94,78% dos detentos voltaram para a prisão depois da saída. O metrô tem muitas panes, acidentes fatais e falhas, entretanto cumpre a função de nos transportar durante a maioria do tempo e por isso não é desativado. Além do mais, as chances de ocorrência de crimes sem a existência das medidas de retomada de vínculo entre detento e comunidade são infinitamente mais preocupantes do que os crimes que acontecem durante as saídas, principalmente porque, quando a pena acaba, se torna mais difícil acompanhar o cotidiano do detento para garantir que ele não volte a cometer delitos.

5 — “Mas a Suzane von Richthofen sempre saí no Dia dos Pais ou das Mães e isso é uma vergonha pro Brasil!”

Pode ser confuso ver a Suzane saindo da prisão nessas datas, porém isso acontece porque não existe uma ligação entre os dias da saída e a vida pessoal do detento que saí. Exatamente para facilitar a contagem e o controle dos que saem da prisão durante as saídas é que elas acontecem em feriados específicos — em São Paulo esses feriados são os dias dos pais e das mães, a Páscoa, Natal e Finados. A Suzane pode sair no Dia das Mães, assim como, se o Grinch um dia for preso e cumprir os requisitos mínimos, poderá sair no Natal — não existe a possibilidade de conferir a pena e história de vida de cada um dos detentos para delimitar dias diferentes para a saída porque isso sim dificultaria o processo de retorno de todos eles. Suzane não está saindo para “visitar a mãe” no Dia das Mães, ela está indo para o local que indicou ao juiz quando foi aberto o pedido de progressão e saída temporária.
Parece estranho? Sim.
É algum tipo de “privilégio branco” ou “a justiça rindo de você”?
Não.
Até porque TODOS OS ANOS as matérias sobre as saídas da Suzane colaboram para a disseminação de mais desinformação e para que a demanda pelo fim das saídas aumentem. Então sempre que você pede para que a Suzane não tenha mais esse “privilégio”, corre-se o risco da extinção do direito a outros detentos e é assim que funciona o populismo penal midiático: se usa um caso exceção que causa uma revolta geral capaz de fazer com que a população aprove medidas que irão prejudicá-los no futuro sem pensar muito sobre o assunto.

6 — “Mas vou correr o risco de ser vítima de um crime, SUZANEEEEE!!!”

Como dito acima, essa medida existe exatamente para que crimes sejam evitados. As saídas são um método de garantir a integração do ex-detento quando ele está de volta à sociedade. Se não existisse a progressão e as saídas, provavelmente a criminalidade seria MUITO maior e as chances de que todos os ex-detentos praticassem mais crimes ao sair da prisão seriam MUITO maiores.

7 — “Mas meu candidato prometeu acabar com a progressão e com as saídas”

Nesse caso, sinto dizer, mas seu candidato está apelando para sua falta de conhecimento em segurança pública para fazer promessas que têm impacto midiático sem ter nenhum fundamento. Acabar com as saídas é uma entre várias formas de colaborar com o aumento da violência e insegurança e não o contrário. Nesse caso, é possível dizer que seu candidato está fazendo o que alerta a campanha #EleiçõesSemTruque — usando falácias e palavras mágicas para conseguir sua atenção e voto sem se importar com a realidade e com sua segurança de fato.

Dúvidas sanadas, então fica o recado:

Confira o que seu candidato diz sobre o assunto: pergunte, consulte o plano de governo e questione os discursos fáceis.

Cortar todos os vínculos entre detentos e mundo exterior é um modo de colaborar com a marginalização e exclusão de pessoas que um dia estarão de volta a sociedade e precisarão de locais para morar, empregos e condições mínimas de sobrevivência.

Retirar possibilidades de vínculo acabando com a progressão é um método de agravar nossos problemas de segurança e não de melhorá-los. As prisões têm contribuído para o agravamento da violência e desigualdade de nossa sociedade exatamente porque não tem qualquer projeto — são poucas as medidas e possibilidades de ressocialização — acabar com o pouco do que se têm na área é contribuir com o agravamento da crise de segurança pública que vivemos há tempos.

Que não deixemos os discursos fáceis vencerem mais uma vez.

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