Saudosismo do nomadismo

O que nos resta fazer quando a cidade e o movimento nos são roubados?

_erinhoos
Revista Subjetiva
4 min readApr 5, 2021

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São Paulo, fonte.

E eu, que sempre fui apegado à experiência da errância, do flanêur, da deriva… Cria da metrópole mais empanturrada do hemisfério Ocidental, minha relação com a cidade sempre foi essa, de errar, flanar, buscar o valor de uso naquilo que a urbanização insiste em destituir de valor. Quando viajo, cidades grandes estão na minha prioridade, o que é de se esperar: cidades grandes são o ecossistema ideal dos encontros inesperados, do choque de diferenças, do cosmopolitismo.

Outra dimensão da deriva metropolitana que é, pra mim, fundamental, é a dimensão de uma temporalidade errática, do susto, do acaso, da mudança súbita de planos, que integra esse ethos sedutor e malandro das esquinas, botecos e ciladas tão familiares para o citadino latino.

E eu, quase nos trinta, sei que minha fala tem gosto geracional e um cheiro de Augusta underground. Minha deriva é anterior às ciclovias, aos aplicativos de geolocalização, ao busão noturno do Haddad, à popularização do Uber, ao meu próprio cartão de crédito. É também anterior à Paulista aberta, à Augusta gentrificada, à linha amarela do metrô, ao Minhocão se chamar João Goulart. Eu aprendi a caminhar e a gozar dessa caminhada ao acaso, essa cartografia mental & selvagem da cidade, e, graças à Deusa, nunca me desvencilhei desse vício da minha socialização urbana.

Seguindo os insights dos antropólogos Tim Ingold e Jo Lee Vergunst, pensamento, sentimento e andar se constroem mutuamente. Nosso conhecimento sobre o mundo está condicionado aos nossos percursos, numa articulação entre trajeto e raciocínio.

A própria vida é tanto uma longa caminhada quanto uma longa conversa, e os caminhos pelos quais andamos são aqueles ao longo dos quais vivemos. (…) Caminhar é uma atividade profundamente social: em seus tempos, ritmos e inflexões, os pés respondem tanto quanto a voz à presença e à atividade dos outros. As relações sociais, afirmamos, não são representadas in situ, mas sim ritmadas ao longo do terreno.
“Introduction”, Ways of Walking.

Nossa compreensão sobre o mundo em termos de escala, textura, percepção está cada vez mais fraturada, distorcida, chapada, pois estamos cada vez mais sedentários, pegando atalhos, temendo o Outro em um cruzamento, receando o inesperado. Não à toa também nos comunicamos de acordo com esse regime cada vez mais fragmentado, de relações líquidas, olhares domesticados e telas que nos capturam da deriva. Como diria Zygmunt Bauman,

O ser humano de hoje passa sete horas e meia diante de algum tipo de tela. Se a interação com alguém na rede não te interessa, aperta um botão e adeus. (…) O corpo a corpo te obriga a se confrontar com a diferença. Administrá-la com os sentimentos, elaborá-la. Um efeito colateral dessa dissociação é que se perdeu a vontade do trabalho “bem feito” também nas relações. Perdemos a capacidade de nos relacionarmos com esmero.

Como improvisar, portanto, sobre uma partitura deteriorada, sem folhas ou rasgada?

Como garantir nossa marca, como resistir à higienização do espaço, como dotá-lo da nossa subjetividade, das máculas da luta coletiva? Longe de ser apenas parte de um estilo-de-vida de uma classe média qualquer, a errância é também condição incontornável para a classe trabalhadora e para o lúmpen, é tática de resistência frente às gestões microfascistas, é o lugar possível da trincheira, da descoberta, da fissura. E, conforme argumenta Paola Berenstein Jaques,

Os errantes são, então, aqueles que realizam errâncias urbanas, experiências urbanas, a experiência errática das cidades. A experiência errática afirma-se como possibilidade de experiência urbana, uma possibilidade de crítica, resistência ou insurgência contra a ideia do empobrecimento, perda ou destruição da experiência a partir da modernidade, levantada por Walter Benjamin e retomada por Giorgio Agamben, que radicaliza a questão ao sugerir o que seria uma expropriação da experiência. Mesmo vivendo um processo de esterilização da experiência hoje, esse processo, que, no caso das cidades contemporâneas, seria o processo de espetacularização urbana, não consegue destruir completamente a experiência — o que se aplica especialmente às cidades brasileiras — , embora busque cada vez mais sua captura, domesticação, anestesiamento.
Elogio aos errantes.

O confisco de um nomadismo possível é, portanto, o confisco da possibilidade da experiência, do corpo a corpo, da caminhada, do direito à cidade.

E eu, que sempre me achei o maior errante — mesmo sucumbindo paulatinamente ao longo de anos às tecnologias que aqui mesmo critiquei — , agora, me encontro alijado da cidade que é minha, sujeito à virulenta casualidade de uma pandemia, à necropolítica pervertida do genocídio e à acefalia de um povo irresponsável porque cindido. Me encontro, ademais, alienado da errância porque relativamente privilegiado e empoderado. Mas me encontro prostrado, impotente, relegado ao sedentarismo de uma casa que é pequena demais perto da imensidão sem fim dessa metrópole. Eu, para quem mundo e casa sempre foram sinônimos.

E quando as ideias voltarão a ser perigosas?

São Paulo, fonte.

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_erinhoos
Revista Subjetiva

_antropólogo, barista informal, errante incorrigível, cantor de karaokê, sérião nas horas vagas