“Se eu fechar os olhos agora” — A minissérie que expõe problemas atuais através do passado

Mateus Pereira
Revista Subjetiva
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4 min readMay 10, 2019

Sério, a Globo sabe fazer coisas muito boas quando quer…

Os detetives mirins da série (Divulgação/Globo)

Assim como no cinema, já é de praxe que as séries nacionais são subvalorizadas em comparação às produções norte-americanas. Com a popularização dos serviços de streaming, as maratonas televisivas se tornaram um hábito para os brasileiros. Os programas internacionais dominam a preferência do público, apesar dos investimentos da Netflix em lançar séries nacionais nos últimos anos, como a distópica “3%” e a boêmia “Coisa mais linda”. No entanto, é uma minissérie da tradicional Rede Globo que chama atenção positivamente nesse primeiro semestre.

Lançada no horário das 23h e na plataforma online da emissora, “Se eu fechar os olhos agora” é uma obra que se destaca pela qualidade cinematográfica e pela abordagem de assuntos delicados nos dias atuais, mesmo tendo sua trama centrada no ano de 1961. Baseada no romance homônimo de Edney Silvestre, a série apresenta temas como racismo, machismo, corrupção e a falsa moralidade de maneira bastante verossímil.

Eduardo, Ubiratan e Paulo (Divulgação/ TV Globo)

Os pré-adolescentes Paulo Roberto (ou PR) e Eduardo são os personagens que conduzem esse thriller psicológico. Após um banho de rio, os amigos encontram o cadáver da bela Anita, brutalmente assassinada a facadas. Logo que a notícia da morte da jovem se espalha na cidade, é perceptível que há um conluio para minimizar o ocorrido entre os moradores da fictícia São Miguel, vista a conduta dos policiais e a confissão do velho Francisco, dentista e esposo da vítima, claramente utilizado como bode expiatório pelos homens que fazem parte da elite.

Quando o único jornalista do local morre em um incêndio, fica claro que algo está sendo ocultado. Por isso, PR e Eduardo começam uma investigação particular, em busca de pistas para desvendar o crime. Ao longo da trama, recebem a valiosa ajuda de Ubiratan, idoso misterioso, que tem interesse em investigar o passado de Anita.

Máscaras sociais

Se Eu Fechar os Olhos Agora — Anita (Globo/Mauricio Fidalgo)

Dona de uma beleza estonteante, Anita atiçava olhares vorazes da maioria dos homens da pequena São Miguel. Ao mesmo tempo, seu passado era escondido e embora fosse negra, a moça buscava formas de diminuir a diferença social ao se enquadrar aos costumes da mulher branca. Peso que Paulo também sente, ao ser o único menino negro da escola e ser visto com desdém pelo próprio pai. Enquanto as descobertas avançam, detalhes e segredos passam a ser revelados, pondo em xeque o conservadorismo local.

No avançar da trama, as personagens femininas que ao início pareciam caricatas, ganham novas facetas, aumentando a complexidade de seus papéis. É o caso de Isabel, a primeira-dama, e Adalgisa, casada com o empresário mais rico da região. A mulher do prefeito é vista como “bela, recatada e do lar”, mas anseia por liberdade e ao buscá-la, sofre em falhar como mãe. Já Adalgisa reflete a mulher espontânea que curte os prazeres libidinosos da vida, escondendo seu lado afetivo. Se antes, pareciam coadjuvantes perante seus respectivos esposos, ao final da série, são elas que roubam a cena.

Mariana Ximenes arrasa no papel de Aldagisa (Divulgação/Globo)

Os méritos

Além do enredo, a produção conta com outras qualidades que merecem ser ressaltadas. O roteiro é preciso e não parece pedante. A narrativa se desenrola de forma natural para seu desfecho. A fotografia possui um filtro ao estilo sépia e leva os olhares para aspectos que parecem imperceptíveis. Os diálogos carregam tensão, mostrando personalidades distintas e ameaças veladas. Porém também há momentos de ternura e aventura no núcleo juvenil e a amizade entre Eduardo e PR é realmente comovente.

A atuação é um capítulo a parte. Até quem tem pouco tempo de tela está bem. Se novatos como Thainá Duarte (Anita) e João Gabriel D’Aleluia (Paulo) surpreendem, atores consagrados dão o seu melhor e transmitem as características essenciais de seus personagens com precisão e encantamento. Cito alguns para exemplificar: Antônio Fagundes (Ubiratan), Débora Falabella (Isabel), Murilo Benício (Adriano), Jonas Bloch (Tadeu) e Mariana Ximenes (Adalgisa). Claro, vale ressaltar a produção de Ricardo Linhares e a direção de Carlos Manga Jr.

O velho retrato da “família tradicional brasileira” (Estevam Avellar/Divulgação Globo)

O que torna a “Se eu fechar os olhos agora” mais especial é a sua contemporaneidade. A adaptação do livro que foi publicado em 2009 traz pontos negativos que permanecem irraigados à cultura nacional. A corrupção política, a fome pelo poder, o machismo, o preconceito e principalmente a formulação do hipócrita cidadão de bem. A decisão de trazer frases tão ligadas ao ex-presidente Temer e a Jair Bolsonaro (‘temos que manter/mudar isso daí’) é proposital e engraçada ao mesmo tempo. Nos faz refletir sobre tudo o que enxergamos de estranho, errado e complicado no período atual. E que continua lá, mesmo depois de fecharmos os olhos.

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Mateus Pereira
Revista Subjetiva

Jornalista tímido que gosta de escrever sobre cultura pop e aleatoriedades da vida. Reclama muito no twitter. E ama sorvete com batata frita. IG: m_pereiras