Seitas abusivas #2: isolamento, imersão e controle

Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva
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9 min readFeb 15, 2018
Rancho Barker, o último esconderijo da Família Manson, fica em um vale cheio de rochas e pedras e só é acessível por estradas arenosas e acidentadas.

Para que uma seita consiga controlar efetivamente os seus membros, os líderes recorrem a técnicas que envolvem uma série de práticas. Mencionei algumas delas no primeiro artigo, e a partir desse texto vamos nos aprofundar naquilo que é popularmente conhecido como “controle mental”, “lavagem cerebral”, “reforma de pensamento”, ou termos similares.

A ideia é sempre a mesma. Os indivíduos devem acreditar nos seus líderes e nas doutrinas da seita de tal modo que dedicam suas vidas, entregam seus bens, e defendam ferozmente a ideologia. Isso não acontece do dia para a noite. É preciso uma mudança radical. Essa mudança só ocorre após um bem sucedido controle de pensamento, de comportamento, de comunicação e do emocional.

É muito difícil fazer isso quando as pessoas levam suas vidas normalmente em casa e visitam o templo/sede/casa do líder apenas uma ou duas vezes por semana. Embora saibamos que ainda é possível realizar tal mudança radical mesmo nesses cenários em que é exigido apenas uma frequência semanal (como cultos dominicais em um templo), estamos falando de um nível ainda mais profundo.

Seitas que viveram em comunidades isoladas da sociedade (Templo do Povo, Família Manson, River Road Fellowship) são as que potencialmente realizam esse tipo de mudança radical com maior eficácia. O motivo é muito simples: ao isolar os indivíduos de seus amigos, familiares, vizinhos e até mesmo de noticiários na TV, os líderes conseguem cercá-los completamente com uma nova forma de pensar, sentir, enxergar o mundo e lidar consigo.

Algumas vezes, por falta de recursos, as seitas se limitam a manter uma casa em algum bairro periférico da cidade, mas isso não impede que os líderes isolem os membros com sucesso. Em casos mais extremos, o local é muito distante e de difícil acesso, como o esconderijo da Família Manson.

Isolamento

Nem sempre isolar-se e morar na comunidade da seita é um requisito inicial, mas em algum momento os novos membros serão emocionalmente induzidos a tomar essa decisão. Sem este passo decisivo, não é possível seguir o caminho proposto pelo grupo —caminho este que supostamente leva a uma evolução espiritual, ao paraíso, entre outras promessas.

Portanto, a seita que já vive em uma comunidade sempre deseja que os novos membros decidam mudar-se para este local. O discurso para convencê-los varia. Algumas apresentam imediatamente a necessidade da mudança; outras apenas mostram como é maravilhosa a vida em comunidade, longe do mundo “maligno”, do “sistema”, dos “inimigos”.

De fato, costuma ser sedutora para o perfil das vítimas a ideia de viver distante e independente de um mundo que as oprime. A comunidade fornece de tudo: teto, alimento — que os próprios membros plantam — , segurança, acolhimento, afeto. E, claro, um aprendizado mais intenso e necessário para a evolução espiritual, ou seja lá o que estiverem prometendo.

Porém, mudar-se para a comunidade envolve uma série de decisões drásticas. Algumas dessas decisões são muito enfatizadas como necessidades básicas para “romper” com o “sistema”.

Entrada da Jonestown, a vila construída por Jim Jones, líder da seita Templo do Povo.

Nesse ponto, é importante que os membros separem-se de suas famílias e amigos, de preferência negando-os e rompendo verbalmente os laços. Algumas seitas (ex., Cientologia) consideram importante que os membros declarem para sua família que eles não terão mais nenhum tipo de contato a menos que eles também entrem para a seita.

Esse tipo de separação e isolamento é uma técnica conhecida como “Milieu control”, e se trata de um controle do meio ambiente e condição de vida do membro. Essa técnica é amplamente utilizada por grupos que recorrem à reforma de pensamento.

Para convencer os membros, são usadas frases, jargões e argumentos. Um dos recursos mais conhecidos pelos pesquisadores de seitas é chamado de “síndrome de nós/eles” — os membros da seita são os únicos detentores da verdade e por isso o mundo se voltará contra eles. Ao mesmo tempo, eles devem combater o mundo, que é mau, perverso e irremediável.

Essa abordagem semeia o medo de fracassar na missão proposta pela seita. Se o membro não se isolar do mundo, ele corre o risco de ser contaminado por ideias contrárias à “verdade”. Essas ideias podem vir de qualquer um: família, amigos, um balconista de alguma loja, os telejornais, as novelas.

Algumas seitas também usam o clássico “ideal de Pureza”. Uma vez que crescemos e vivemos em um mundo “impuro”, é preciso que o membro se isole completamente até que esteja “limpo” da “impureza impregnada” nele. Só então, ele poderá voltar ao contato com a sociedade, imune às “imundícies”

Claro, esse dia nunca chegará, pois ninguém pode atingir os padrões elevados de perfeição da seita.

Argumentos são usados para convencer a se isolar em uma comunidade afastada:

  • Lá fora as pessoas são más
  • Se você seguir o caminho verdadeiro, todos se voltarão contra você
  • O governo vai perseguir você
  • Aqui nos protegemos de quem nos persegue
  • Aqui vamos nos purificar
  • Aqui vamos treinar para combater quem se voltar contra nós
  • Lá fora ninguém te ama de verdade
  • Aqui você aprenderá tudo o que precisa
  • Aqui seremos sua família
  • Somos seus únicos amigos de verdade

Seitas baseadas na Bíblia ou simplesmente em Jesus Cristo podem recorrer a um famoso trecho, no qual Jesus se recusa a atender o chamado de sua mãe. No texto bíblico (Mateus 12:46–50), ele se refere aos discípulos como sua verdadeira família. O trecho é usado para exemplificar como o novo membro deve considerar a seita como sua nova família, negando os laços sanguíneos, que seriam “seculares” e “mundanos”.

Cena do filme “House of Manson”, de Brandon Slagle

Imersão

Após a mudança para a comunidade, o novo membro será bombardeado 24 horas por dia e 7 dias por semana com novas informações, uma nova cultura, novos hábitos, nova forma de pensar, nova fé, nova “família”. Uma nova identidade é modelada.

Enquanto a família de sangue do membro atrapalhará sua nova jornada, a nova família, composta apenas por membros da seita, é formada por pessoas que o auxiliarão. Essas são as únicas pessoas “que realmente se importam” com o novo participante.

Dessa forma, a seita garante que seus membros não apenas se separem fisicamente de seus familiares e amigos, mas também não queiram entrar em contato. Algumas seitas proíbem expressamente telefonemas e emails, mas outras preferem dar a ilusão de liberdade, fazendo com que os membros acreditem que tomaram essas decisões por livre e espontânea vontade. Assim, os líderes não podem ser acusados de dar ordens proibitivas.

Mesmo que algumas seitas “permitam”, a vontade de manter contato com os familiares e amigos diminuirá. Os membros não terão mais motivos para isso. Seu modo de pensar acerca de suas relações e laços afetivos começa a mudar.

Outra técnica usada nesse processo é a ressignificação de palavras. Por exemplo, para convencer os membros de que ninguém os ama de verdade, a própria definição de amor é alterada. Na minha experiência, a seita realizava estudos extensos e intensivos com cada novo membro, repetidas vezes, para estabelecer um conceito sobre o que é o amor. Claro, o “amor” é algo muitíssimo elevado que apenas os participantes da seita podem oferecer.

Além disso, a definição de amor apresentada também abre espaço para os abusos. O amor exite sacrifício — doar tudo o que tem. O amor exige que a “verdade” seja dita — humilhações e culpa serão despejadas sobre a vítima.

A imersão na comunidade permite que ressignificações como esta sejam repetidas constantemente. Qualquer conversa entre membros, durante o café da manhã ou um trabalho comunitário, envolve um novo linguajar, específico da seita.

Por exemplo, se um determinado membro prepara um almoço que não agrada aos demais, ou se esquece do tempero, os “irmãos”podem atribuir essa falha à falta de “amor” — com o novo significado embutido. Portanto, com amor, devem ser humilhados para que aprendam a “amar”.

Uma série de práticas estranhas se tornam cotidianas, como confissões humilhantes em grupos, admoestações, advertências, estudos, entre outras. As confissões são um fenômeno comum em todas as seitas abusivas e envolvem experiências vergonhosas, como admitir em grupo práticas e desejos sexuais.

Assim, aos poucos os dogmas serão não apenas transmitidos, como vivenciados na prática, todos os dias, com a vigilância dos demais membros.

Falando em vigilância, é impossível escapar dos olhos alheios. As comunidades não oferecem privacidade. É comum que membros durmam no mesmo cômodo, compartilhem sempre os mesmos espaços, e atividades solitárias são desencorajadas. O único espaço privado é o banheiro.

Aos poucos, a seita cerca os membros por todos os lados com seus ideais e dogmas através de reuniões, textos compartilhados, aulas, grupos de estudos, conversas casuais. Até mesmo filmes nos momentos de lazer devem apresentar algo que se assemelhe a estes dogmas.

Não há espaço para pensar em outras coisas que não os dogmas da seita.

Cena do filme “House of Manson”, de Brandon Slagle

Controle

Ao cercar os membros com a cultura da seita 24 horas por dia, os líderes conseguem aos poucos obter o controle sobre o comportamento e a forma de pensar. É importante para os líderes anular determinados traços de individualidade, pois quanto mais semelhantes entre si os membros se tornam, mais fáceis são de manipular.

Algumas seitas proíbem os membros de saírem da comunidade, mesmo que para um passeio. Para isso, os argumentos são semelhantes aos que vimos antes para convencê-los a se mudarem: o mundo é maligno. É incutido o medo.

Outras parecem mais “brandas”, e permitem que os membros se ausentem momentaneamente, desde que acompanhados por outro membro. Assim, um sempre estará vigiando o outro.

Um jogo emocional os convence de que não devem sair. Na minha experiência, a palavra-chave era “propósito” (outra palavra que passa por uma ressignificação). Qualquer coisa que não sirva ao propósito do grupo deve ser evitada.

Isso inclui, por exemplo, visitar um amigo, ir ao shopping, ou tomar um sorvete. Essas coisas não servem ao propósito, servem apenas para satisfazer ao corpo, então são desestimuladas. Caso o membro faça algo “fora do propósito”, será julgado pelo grupo, passando por vergonha e humilhação.

O lazer também é controlado. Apenas coisas que sirvam ao “propósito” podem ser feitas, mesmo que o propósito seja permitir que outros membros observem suas atitudes com o objetivo de apontar seus defeitos. Na minha experiência, jogos de tabuleiro, por exemplo, eram incentivados, pois permitia aos membros que examinassem uns aos outros, apontando suas falhas humanas durante a partida.

Com essas práticas, a seita consegue:

  • Controle de pensamento: os membros são bombardeados com ensinamentos e ressignificações de palavras-chave. Leitura de livros é desestimulada; às vezes, proibida. Aos poucos, todos os membros pensam de forma semelhante sobre os mais variados assuntos, e sempre de acordo com as diretrizes da seita. Quem manifestar algum pensamento diferente, será corrigido e provavelmente humilhado em grupo.
  • Controle de comportamento: com a vigilância e a falta de privacidade, o membro vive diariamente atento ao seu comportamento para que não seja pego em flagrante cometendo algum “erro” ou “pecado”. Com o tempo, os comportamentos regrados e cautelosos se tornam habituais.
  • Controle de comunicação: normalmente, as comunidades não possuem TVs, rádios, e outros meios de comunicação. Algumas podem ter acesso à internet, mas apenas para fins muito específicos. Seja como for, a comunicação com o mundo externo é desestimulada. Não se assiste a telejornais e algumas notícias às vezes são transmitidas por algum líder junto com sua interpretação a respeito.
  • Controle emocional: será induzido no membro, dia após dia, sentimentos negativos sobre si mesmo. Sentimentos de culpa sobre seus “erros”, humilhações e a destruição da auto-estima são vistos como parte do caminho para a “evolução espiritual” ou “alcançar o paraíso”. O medo também é estimulado — medo do mundo, medo de errar e ser repreendido, medo dos “inimigos”, medo de ser expulso, medo de perder a salvação. A culpa sobre ser quem é estará sempre incutida na mente do indivíduo.
  • Controle da visão de mundo: através da síndrome “nós/eles”, a seita controla a forma de ver o mundo, geralmente com uma grande teoria de conspiração. Essa conspiração está em tudo que há de negativo no mundo, e essa visão explica as tragédias e injustiças. A seita se coloca como única solução, um “remédio”, uma “cura”, ou um meio para que Deus traga a solução. Assim, a seita está acima do mundo, e o mundo não pode julgá-la, incluindo as leis humanas.
  • Exploração: ao se mudar para a comunidade, os membros serão explorados, seja doando todo o seu dinheiro e seus bens, seja doando sua força de trabalho em troca da moradia e alimentação. Na minha experiência, os membros trabalham em uma empresa de fachada, sem receber dinheiro algum por isso.
  • Uma nova identidade: o resultado de todos esses tipos de controle é que o membro aos poucos adquira uma nova identidade, anulando sua própria individualidade e tornando-se mais parecidos com os seus líderes. É comum que, caso se encontrem com pessoas de sua antiga vida, estejam de certa forma irreconhecíveis.

Com tanto controle sobre os indivíduos, pode ser difícil entender como as pessoas se deixam levar por esses grupos destrutivos. O próximo texto da série Seitas Abusivas mostrará que tipo de pessoas são recrutadas e como pessoas inteligentes e saudáveis acabam cooptadas.

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Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.