Seitas abusivas #3: Como fui cair nessa?

Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva
Published in
7 min readFeb 21, 2018
Cena do filme “Martha Marcy May Marlene” (2011)

Durante 2004, assim como muitos jovens evangélicos insatisfeitos com a hipocrisia da religiosidade de nossas igrejas, comecei a participar de movimentos “avivalistas”. Era comum encontrar em nosso meio pessoas indignadas com os erros dos nossos líderes cristãos. Sabíamos listar defeitos e falhas das nossas igrejas. Por isso, os congressos eram uma espécie de refúgio.

Acreditávamos que Deus poderia falar conosco diretamente sem um intermediário. Éramos contra as ordens que vinham de um ser humano corrupto e criticávamos o estilo de vida dos pastores cada vez mais ricos e poderosos. Por isso, éramos incompatíveis com a religião institucionalizada. Acima de tudo, acreditávamos que uma vida realmente de acordo com os ensinamentos bíblicos poderia mudar não apenas nossas vidas, como também a sociedade.

Deixamos nossas igrejas. Éramos devotos sem líderes. E talvez por isso fomos as primeiras pessoas a serem abordadas por um novo grupo que surgiu nesse mesmo meio, com um discurso mais radical — romper por completo com as denominações religiosas e fazer tudo por conta própria.

O que não sabíamos é que o grupo iniciaria uma série de práticas nada divinas e se tornaria apenas mais uma seita que pratica abusos emocionais e explora o trabalho de seus membros*.

Hoje, 14 anos depois, 3 anos e meio após minha saída do grupo, ainda me pergunto “onde eu estava com a cabeça? Como pude ser tão ingênua?”

É comum que vítimas de seitas e cultos destrutivos se sintam culpados por terem sido enganados. “Como fui cair nessa?” “Era tão óbvio!” “Fui feito de otário”. Como lidar com este sentimento? E como lidar com pessoas nessa situação?

Não culpe a vítima

Antes de prosseguir com a série sobre seitas abusivas, quero dedicar esse texto ao esforço de tirar essa culpa autoinfligida. Ao mesmo tempo, quero que os leitores que nunca passaram por essa situação não julguem ou diminuam a inteligência de pessoas que já foram vítimas de uma seita.

Quem já foi vítima de seita abusiva não deveria se sentir inferior por isso. Ela já terá que lidar com muitos traumas e feridas abertas e não precisa carregar o peso dessa culpa durante o processo. Aqueles que observaram de fora, que talvez até avisaram a vítima sobre o perigo que ela corria, da mesma forma não devem julga-la depois que ela deixar grupo.

Não devemos nunca culpar a vítima. As pessoas têm necessidades que podem leva-las ao engano e isso não é culpa delas. A culpa sempre será do líder manipulador. Não importa o quão “óbvio” o truque parecia para quem olhava de longe — esse observador não tem as mesmas necessidades, sonhos e anseios que foram usados como isca para atrair a vítima.

Além disso, a vítima não deveria se sentir inferior ou menos inteligente por ter sido enganada, pois muitas seitas costumam atrair pessoas questionadoras, que não se adaptam à sociedade. Talvez por enxergar que a realidade é cheia de contradições. Talvez simplesmente por terem um vício que não é socialmente aceitável. Ou carregam transtornos psicológicos que atrapalham o convívio social. Ou até mesmo por criticarem demais a sua religião atual.

As seitas prometem uma solução a esses “problemas” e oferecerão fórmulas ou filosofias que farão sentido dentro daquela necessidade ou perspectiva específica da vítima.

Pior ainda, os líderes geralmente são carismáticos e sabem se aproveitar de vulnerabilidades dessas vítimas que não se adaptam à sociedade. Oferecem compreensão, amizade, proteção, aceitação incondicional e um lugar onde há sentimento de pertencimento.

Por exemplo, algumas delas prometem a cura do alcoolismo, tabagismo ou dependência química. Basta frequentar as reuniões e manter sigilo. De quebra, as vítimas estarão em um lugar onde todos compreendem seus problemas e dificuldades em se adequar à sociedade. Todos compartilham da solidão e rejeição. E o líder garante que esses sentimentos negativos sejam eliminados.

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Tomando como exemplo as seitas modernas que se derivam do cristianismo, elas costumam se aproveitar das próprias fragilidades, erros e problemas da religião cristã para atrair fiéis que já estão insatisfeitos. Assim, é fácil recrutar os mais jovens que são devotos fervorosos, mas não se adaptam à corrupção religiosa, não se conformam com a falta de mudanças em suas vidas e na sociedade, e buscam algo que pareça mais de acordo com o que a religião promete ser.

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Assim, a seita que se vende como mais próxima do “verdadeiro cristianismo”, aproveitando-se de interpretações bíblicas radicais, conquista novos adeptos. Basta notar que a maioria dos seguidores desse tipo de grupo são ex-membros de alguma religião cristã.

Podemos julgar essas pessoas por serem atraídas por essas armadilhas? Não seria um ato de esperança?

Como a seita costuma isolar os seguidores e aprisioná-los em uma visão única de mundo, o pensamento entre todos começa a ser unificado, assim como o comportamento, linguajar, preferências, crenças, ideologias, etc. E, no processo, tudo o que há de bom nas pessoas é “sugado”.

Caso alguém não se adapte a essa unificação, inevitavelmente carregará sobre si um peso maior, a seita jogará culpa sobre culpa, o que abrirá espaço para os maiores abusos. E, caso ainda não ocorra a adaptação, vem o rompimento.

Muitas vezes, esse rompimento é traumático, marcado por mais julgamentos e condenação. Ao deixar a seita ou culto, essa pessoa dilacerada carregará dupla culpa — aquela que a levou a se submeter aos abusos e aquela despejada sobre si por ter abandonado “a fé”, “o único caminho”, a “única verdade”.

A seita dirá que ela é fraca, traidora e inimiga. Paranoias e medos plantados pelo líder do grupo podem segui-la por bastante tempo, e será difícil recuperar uma mente muito consumida por seitas abusivas. Por isso, a última coisa que ela precisa é de mais julgamentos por parte da família e amigos.

Pessoas recrutadas normalmente são saudáveis e inteligentes

É mais fácil para pessoas de fora acreditarem que são “imunes” a uma seita. “Sou esperto demais para cair nessa”. Mas provavelmente elas não foram abordada por nenhum recrutador de uma seita que ofereça aquilo que elas precisam.

Essa crença popular de que seguidores são pessoas com problemas mentais, tolas ou com uma predisposição a seguir cegamente lideranças, é derrubada por um especialista no assunto. De acordo com Ian Haworth, um ex-membro de culto, que hoje comanda o Cult Information Centre do Reino Unido desde 1987 para ajudar vítimas de seitas, o que ocorre é justamente o contrário.

As pessoas mais fáceis de recrutar são aquelas com uma mente alerta e questionadora, que querem debater coisas com outras pessoas. Pegue uma pessoa de vontade forte e a coloque num ambiente de culto, as técnicas usadas vão quebrar essa pessoa muito, muito rápido. Quanto mais inteligente e saudável for sua mente, mais rápido e fácil eles vão conseguir te controlar. É uma realidade trágica.¹

Porém, por meio de um convívio intenso, somado a técnicas de controle mental, cursos, palestras ou estudos no qual há um “mentor”, o grupo limita o pensamento da vítima a uma única percepção, um único modo de interpretar o mundo. Mas isso será feito levando a vítima a acreditar que está questionando todas as outras formas de interpretação da realidade.

As vítimas também são submetidas a situações fora do seu controle, como falta de alimentação adequada e privação do sono, o que as tornam ainda mais suscetíveis a sucumbir às técnicas de controle mental.

Nas palavras de Haworth:

“Sem controle dos processos de pensamento normais, a pessoa fica comprometida e não pode mais avaliar as situações criticamente. Você se torna outro.”

Quando a seita é do tipo que isola os membros para viverem juntos, o indivíduo “se torna” o coletivo. Com a ausência de outras influencias, ele é “assimilado” por uma norma comportamental e de pensamento determinada pelo líder.

Esse processo só pode ser interrompido com elementos capazes de “reativar” a mente crítica, ou melhor, fazer a mente aplicar as críticas aos dogmas da seita. Algo com uma visão de mundo diferente capaz de “hackear” a blindagem programada pela seita para proteger seus membros de influências externas.

Vítimas vulneráveis

Também existem muitas seitas que preferem cooptar pessoas emocionalmente frágeis, vítimas de abusos na família, em situação de risco, oprimidas pelo meio onde vivem.

Embora sejam inteligentes e questionadoras, essas pessoas podem apresentar um quadro de depressão, ansiedade, bipolaridade e outros transtornos. Muitas estão confusas e não têm acesso a um profissional para terapia ou medicamentos. Talvez sequer têm conhecimento de sua condição mental/psicológica. Estão vulneráveis às promessas de um líder de seita.

O líder altamente carismático conquistará a confiança da vítima prometendo acolhimento, uma vida mais justa, afeto, compreensão, um lugar onde será aceita por todos. Uma nova família. Ela se sentirá bem, acolhida e momentaneamente feliz.

Por isso, é importante ficar atento às promessas que se faz para tratar de problemas mentais, psicológicos e para vítimas de abuso familiar, entre outros.

Outras abordagens ainda podem ser usadas, já que as seitas são diversas, e seria inviável tentar desenhar o perfil dos alvos de cada uma delas. Mas em todos os casos, a resposta para a pergunta do título é a mesma: a vítima “caiu nessa” porque líderes de seitas são especialistas em enganar pessoas e extrair delas o que elas têm de melhor.

*Trecho baseado em minhas próprias experiências.

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Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.