Seitas abusivas #4: O círculo da culpa e do medo

Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva
Published in
10 min readMar 5, 2018

Após muitos anos na comunidade, fui chamada para “o círculo”. Claro, aquilo era algo rotineiro. Mas foi a primeira em que ameaçaram me expulsar da casa.

O motivo eram minhas atividades que não serviam ao propósito da comunidade. Eu tinha projetos literários e dedicava boa parte do tempo a eles.

Um grave erro.

Meu sonho “vaidoso” de ser escritora reconhecida no mercado precisava ser confessado no “círculo”.

Confessei. Como de costume, outros dos meus “pecados” foram novamente colocados em pauta. O grupo concluiu que eu estava na comunidade apenas porque me era “confortável”. Afinal, eu tinha casa e comida “de graça” — independente do fato de que eu trabalhava todos os dias na empresa de fachada sem ganhar um tostão.

Me foi dito que apesar de todos os esforços deles em “me ajudar”, eu não demonstrava nenhuma melhoria. Disseram que eu não saberia me virar sozinha. Que, acomodada demais, eu jamais conseguiria sobreviver. Que não seria capaz de ter um emprego e pagar minhas contas.

Outra pessoa disse que, mesmo assim, a porta estava aberta pois eu não fazia nada de “útil” para a comunidade.

Após algumas horas, o mais antigo dos “irmãos” — que se recusava ser chamado de líder — foi incluído na conversa através do Skype. Ele convenceu aos demais que era necessário que dedicassem tempo a mim. Que me ensinassem. Que tivessem paciência.

Não foi daquela vez que deixei a seita. Mas deveria ter sido.

Para que me “purificasse” dos sonhos “pecaminosos” de ter uma carreira como escritora, me deixaram sem internet. Fui coagida a abandonar todos os meus projetos e deletar todos os contatos, sem nenhum aviso prévio. Fui recomendada a não responder a nenhuma das pessoas que dependiam do meu trabalho como revisora para publicarem seus livros, incluindo meus sócios.

Assim eu fiz. Apesar disso, pouca coisa mudou e continuei sendo convocada para conversas semelhantes, uma das quais fui induzida a raspar a cabeça.

Uma coisa eles conseguiram: desde então, mesmo após deixar a comunidade, minha vontade de escrever foi completamente destruída. Este é o poder de controle emocional do “círculo”.*

Quando uma seita abusiva recruta com sucesso um novo membro, chega a hora de usar algumas técnicas para transformar as ações e pensamentos da vítima e, assim, deixá-la vulnerável a outros tipos de abusos. Como já foi descrito nessa série, o jeito mais eficaz de fazer isso é separar o indivíduo de sua família e amigos, isolando-o da sociedade.

Este é apenas o início. Morando em uma comunidade afastada ou não, os membros sempre serão submetidos a uma série de técnicas de “controle emocional”. O principal ingrediente para isso é a culpa, e esse instrumento é usado por qualquer seita abusiva — e também por muitas religiões oficiais, porém não é delas que estamos tratando nessa série.

O sentimento de culpa estará sempre nos pensamentos do indivíduo. Em muitos casos, é justamente a culpa que faz com que alguém procure ou aceite a ajuda desses grupos, em primeiro lugar. Por exemplo, um dependente químico que se sente culpado por seu vício pode recorrer a uma “grupo de apoio” para encontrar alguma solução. Só depois descobrirá que este grupo pratica uma série de abusos contra os participantes.

Essas pessoas ouvirão constantemente que são pequenas, fracas, estúpidas, ignorantes e pecadoras. Elas serão rotineiramente criticadas, envergonhadas, ridiculizadas e diminuídas.

O líder e os membros mais antigos repetirão constantemente aos novatos frases como:

  • Você é um pecador
  • Você merecia a morte mas está recebendo amor, seja grato
  • Você é ridículo
  • Você é tolo
  • Você é egoísta
  • Você namora/se casou apenas por egoísmo
  • Você não ama de verdade

Claro, essas frases não são ditas fora de contexto. Antes de ouvi-las, os membros normalmente passam por aulas e estudos em grupos onde são transmitidos os conceitos da seita sobre palavras como “amor”, “pecado”, “egoísmo”, entre outros. O líder insistirá que o “mundo” ensinou erroneamente tais coisas, abrindo margem para afirmar que o membro está vivendo de forma errada e agora aprenderá a viver corretamente.

Cena do filme Sound of My Voice (2011)

Assim, se amor é algo completamente diferente e mais elevado do que nós aprendemos na sociedade, a conclusão óbvia é que o membro recém-chegado nunca amou e não sabe amar. Logo, é um egoísta que precisa de “arrepender” de sua vida atual.

As acusações de egoísmo farão com que ele repense seus atos até que, eventualmente, decida fazer qualquer tipo de trabalho pela seita, sem receber nada por isso, acreditando que assim abandonou a vida egoísta. Essa é uma das maneiras que os líderes de seitas conseguem submeter seus seguidores ao trabalho análogo à escravidão.

O círculo: confissões, acusações e auto-crítica

Nenhuma “falha” é vista como inerente do ser humano, a culpa sempre é do indivíduo, até mesmo situações sobre as quais ele não tem o controle. Por exemplo, depressão para muitas seitas não é uma doença, e sim “falta de Deus”, ou de qualquer outra coisa que a seita decidir. Ser uma pessoa com doenças/transtornos psiquiátricos em uma seita como esta é um inferno ainda pior.

Seitas geralmente visam um objetivo moral e espiritual extremamente elevado, você precisa se tornar uma espécie de super-humano. Claro, esse objetivo nunca será atingido e o membro nunca poderá dizer que sua jornada está completa e que já pode seguir seu próprio caminho.

Mas os líderes afirmam que há um método para que essa mudança radical ocorra, e um dos pilares desse método é a confissão em grupos.

Se você estiver ou já esteve em uma dessas seitas abusivas que apelam para o controle emocional, já deve conhecer uma atividade vulgarmente conhecida como “o círculo”. Embora cada grupo use um nome diferente, a essência é a mesma.

Consiste em todos os residentes da comunidade sentados em círculo no chão ou em cadeiras pouco confortáveis para discutir um problema — geralmente um membro que quebrou uma regra, ou foi pego em flagrante cometendo algum “pecado”.

Na teoria, a ideia é ajudar a pessoa a examinar seu comportamento, assumir a responsabilidade e procurar meios de mudar de atitude por si mesmo. Mas na prática, é um momento de humilhação em grupo.

Exemplo dessa técnica de controle emocional é o Synanon, um famoso grupo estadunidense de reabilitação para dependentes químicos criado por Charles E. “Chuck” Dederiche, em meados de 1958, na California. Neste grupo, já amplamente caracterizado por estudiosos e ex-membros como seita, havia uma atividade chamada Synanon Game.

Rajneeshees, seguidores de Osho, grupo responsável pelo primeiro ataque de bioterrorismo nos EUA

Neste “jogo”, os membros se humilhavam e confrontavam os demais para exporem suas fraquezas mais íntimas e desejos obscuros. A partir de meados da década de 1970, as mulheres do Synanon eram pressionadas a raspar a cabeça como um ato de contrição. Homens recebiam vasectomias forçadas e algumas gestantes foram coagidas a abortar.

O objetivo do Synanon Game, assim como o de qualquer seita que usa “o círculo”, é esmagar o ego e conhecer todas as fraquezas dos membros. Obviamente, os líderes não têm muitos defeitos e fraquezas para confessar.

Uma vez que essas seções fazem parte da “cultura” do grupo, todos os membros se sentem impelidos às confissões humilhantes. Caso alguém evite fazer suas auto-críticas aos demais, alguém acabará apontando alguma de suas falhas para que todos o julguem. No caso de grupos que vivem confinados na mesma casa todos os dias, não é difícil observar um punhado dessas “falhas” em cada um.

As confissões podem envolver qualquer coisa, desde pequenos atos “egoístas”, pensamentos de natureza sexual, sonhos eróticos, masturbação… até mesmo vontade de tomar sorvete pode ser motivo de confessar o pecado de “vaidade” e “gula”.

Muitas vezes também ocorre uma falsa simetria. Alguns “pecados” são comparados com crimes de assassinato para que o membro sinta uma culpa ainda maior. Eu já ouvi muitas vezes que ter um sonho erótico com uma pessoa é o mesmo que “apunhala-la pelas costas”.

Um dos momentos mais extremos que presenciei foi quando o grupo expôs e questionou a vida sexual de um casal de membros. Ao descrever as práticas sexuais consideradas pecaminosas dos dois indivíduos, a comunidade desencadeou uma sucessão de reações que quase resultou em uma tentativa de suicídio.

Crianças no Synanon Game

Às vezes, ocorre que um membro é colocado no centro do círculo acusado de algum “pecado” ou violação de alguma regra, mas ele se declara inocente. Nesses casos, o círculo pode durar horas. Os demais insistirão na acusação e a reunião não acaba até que o erro seja admitido.

Abaixo, o relato de um ex-membro sobre o “círculo” de algum grupo similar ao Synanon:

O círculo me chamou apenas uma vez e foi por uma coisa insanamente ridícula e mesquinha que não era uma violação de qualquer política ou regra.

Ninguém me deu uma chance. Ninguém identificou qual era meu erro. Eles só queriam que eu concordasse que tinha feito algo errado. Ninguém ouviu quando tentei explicar. Ninguém respondeu quando perguntei o que deveria ter feito. Por duas horas, fui atacado. A estrada fácil era óbvia — admitir que eu estava errado e me desculpar. De jeito nenhum!

Os cortadores [de cabelo] foram trazidos e o Círculo começou a pressionar-me para fazer contrição por minha culpa [significa raspar o cabelo como demonstração de vergonha e arrependimento]. Neste ponto, fiz a minha declaração final — simples e definitiva. Não importa o que eles dissessem, não importa o quanto eles falem, não fiz nada de errado e não admitirei que fiz algo errado. Prefiro voltar ao centro de detenção juvenil do que fazê-lo e acabei com o Círculo.

Não importa a conduta do membro em uma seita abusiva, em algum momento chegará sua vez de ser chamado para o círculo. Então, não fará nenhuma diferença se declarar inocente: o único jeito é admitir a culpa ou romper com o grupo. Infelizmente, esse rompimento muitas vezes é traumático o suficiente para ser evitado.

Aqueles que são chamados para o círculo, perceberão que os demais membros presentes na seção se dividem em diferentes comportamentos:

  • A “autoridade”: aqueles que têm o poder de dar o aval para que o círculo continue, mesmo que o acusado se declare inocente.
  • A “massa”: a maioria que se deixa levar pelas “autoridades”. Estes não se importam muito com verificação dos fatos ou a verdade, apenas incentivam a acusação sem sequer conhecer maiores detalhes. Lembre-se, a vítima da seita está sempre errada.
  • Os “passivos” — aqueles que preferem não dizer nada, mesmo que percebam que a acusação é injusta.

Apesar de sempre haver alguns membros passivos no círculo, esse comportamento normalmente não é visto com bons olhos pela seita e pelos líderes. Eles dirão que o passivo não quer emitir opinião por motivos egoístas, como a auto-preservação, e eles próprios podem ser colocados no centro do círculo para ouvir a respeito de sua omissão.

Pessoas muito tímidas ou que carregam transtornos como ansiedade social sofrem muito com a participação no círculo, independente da posição. Ela se sentirá pressionada a declarar seu ponto de vista quando um outro indivíduo estiver confessando ou sendo julgado; quando ela própria estiver no centro da roda, terá ainda mais dificuldade para lidar com a série de opiniões a seu respeito.

Arrependimento

Também é sempre importante para a seita se certificar que seus membros continuarão confinados na comunidade. Para isso, é incentivada a confissão de “apego” ou a falta de “renúncia” à sua família, amigos, e outros elementos de sua antiga vida. Isso significa que os indivíduos podem ter se separado da família, mas ainda sentem saudades e às vezes cogitam voltar para casa.

Esse tipo de pensamento é considerado como uma quase traição, e deve ser confessado no círculo.

Se a confissão de um indivíduo a respeito de um mesmo “erro” for recorrente, os demais membros apontarão seu passado para deixar bem claro que não houve evolução nos esforços de mudança.

Nesse sentido, nenhum esforço será o suficiente caso os sinais daquele “pecado” não desapareçam por completo no dia-a-dia daquele membro. Outras seções de confissão serão convocadas, dessa vez para que todos apontem a falta de evolução e mudança desse membro específico.

Cabanas da Rajneeshpuram, comunidade internacional dos Rajneeshees, em Oregon

Além dessas novas seções humilhantes, que podem durar horas (já vi algumas durarem dias, com pausas apenas para descansar), os membros podem ser submetidos a medidas mais extremas, como proibição ou obrigações em certas atividades da comunidade.

Caso esse indivíduo continue cometendo os mesmos “erros”, alguns grupos podem deixar de se sentar com ele durante a refeição, por exemplo, para que ele se sinta ainda mais humilhado e excluído.

Por fim, a insistência no “pecado” fará com que o membro possa ser expulso. Essa é a medida mais extrema, e é sempre traumática para a vítima e para todo o grupo, de modo que todos ficam com medo de que ocorra com eles também. Assim, cada um se esforçará ainda mais para não repitam os “erros” anteriores.

Para incutir ainda mais fobias, a seita descreverá o que acontecerá aos membros se desobedecerem o líder ou deixarem o culto. Porém, esse tópico será abordado com mais detalhes em um próximo texto.

*Baseado em minhas experiências pessoais.

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Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.