Seitas abusivas #6: paranoicas, apocalípticas e armamentistas

Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva
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7 min readJan 22, 2019

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Era* mais uma daquelas tardes típicas em que passávamos o dia apenas conversando. Costumávamos passar algumas horas com colegas que não conhecíamos muito bem, com o objetivo de criar uma maior proximidade com todos.

Cristiano** era um desses rapazes com quem eu tinha pouco contato, embora morássemos na mesma casa, junto com os demais membros da seita. Por isso, seguindo as instruções da liderança, dedicávamos alguns dias para conversar.

Naquele dia, Cristiano decidiu me contar sobre as revelações divinas que recebera a respeito de seu próprio futuro.

— Deus me falou que eu sou eunuco.

No linguajar da seita, isso significa que a pessoa havia sido escolhida por Deus para viver sem nenhum tipo de relacionamento sexual.

— Eu não vou me casar — continuou Cristiano.

— Ele disse qual é o propósito? — perguntei, sabendo que para tudo havia um motivo; tanto no casamento, quanto na vida solitária.

— Sim. Eu não vou me casar porque sou um mártir. Deus disse que eu vou morrer quando formos perseguidos.

Nem todos tinham esse tipo de revelação. Alguns, acreditavam que um dia teriam que matar.

O presidente Jair Bolsonaro assinou na última terça-feira (15) o decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo no Brasil. Embora o documento tenha limitações que frustraram os interessados em uma abertura mais ampla, a notícia aumentou a discussão sobre segurança e acidentes domésticos envolvendo armas de fogo.

Nas redes sociais, pessoas contra a medida compartilharam relatos sobre acidentes com armas provocados dentro de casa, muitos envolvendo crianças. Mulheres vítimas de violência usaram no Twitter a hashtag #SeEleEstivesseArmado para mostrar o que poderia ter acontecido caso seus agressores tivessem uma arma.

Além de casos como estes, a posse de armas também exerce um efeito catastrófico no fenômeno das seitas, principalmente em países de cultura bélica como os Estados Unidos. Vou contar um pouco sobre como armas podem ser um ingrediente explosivo quando o assunto são grupos paranoicos com a crença de que o apocalipse está prestes a acontecer — e que eles próprios são os principais agentes desse evento de fim do mundo.

Durante os 10 anos que vivi em uma seita, uma característica sempre foi marcante na comunidade: acreditar que algum dia ela seria perseguida pelo “sistema”. Também havia a convicção de que o apocalipse poderia começar a acontecer a qualquer momento, com o “Anti-Cristo” perseguindo grupos como o nosso. Por isso, desde meus primeiros dias em contato com a seita, foi enfatizada a necessidade de morarmos em algum lugar bem isolado da sociedade para que pudéssemos nos esconder dessa perseguição (e claro, isolar membros da seita também é uma ótima forma de controle).

Eles alimentavam essa “paranoia” ainda mais com maratonas de documentários sobre teorias da conspiração. Estavam certos de que não só seriam perseguidos como também um dia teriam que enfrentar os “inimigos”. Isso significa que talvez tivessem que assassinar alguns “Illuminati” em alguma reunião do clube Bilderberg (uma conferência anual privada que reúne figuras influentes da política, da economia e da mídia). Em determinada época falava-se muito sobre a possibilidade de que Deus nos ordenasse executar esse tipo de missão.

Também havia um discurso muito forte de que deveríamos nos preparar para enfrentar os “tempos de perseguição”. Trechos bíblicos eram usados para nos convencer de que, caso realizássemos as missões divinas, o mundo nos perseguiria assim como perseguiu Cristo.

Assim, em determinada época, todos da seita se matricularam em um dojo de ninjutsu. Essa arte marcial foi escolhida pela seita por contar com técnicas capazes de assassinar rapidamente e exercícios com diversos tipos de armas brancas. Fazíamos experimentos com armas brancas caseiras e havia até mesmo intenção de aprender a forjar espadas.

Eventualmente, quando todos estavam reunidos, o líder perguntava se estávamos dispostos a atirar para matar, caso tivéssemos que defender a casa onde morávamos quando ela fosse invadida por “agentes do sistema”.

Nesse ponto você já deve imaginar que esse grupo tinha muito interesse na aquisição de armas de fogo. Como não era algo muito simples de conseguir (e não havia interesse de entrar no mundo do crime para compras ilegais), foi cogitada a ideia de abrir uma empresa de segurança, na qual os membros da seita trabalhariam como vigilantes para que pudessem ter o acesso às armas.

Rajneeshees, seguidores de Osho, aumentaram a segurança armada após sofrerem atentado em 1983

Felizmente essa ideia não foi colocada em prática na época em que estive no grupo, mas começamos a participar de um fórum na internet formado por pessoas bastante paranoicas com um possível governo do Anti-Cristo e o apocalipse. O ano era 2011. O fim do mundo estava às portas.

Nesse fórum tinha todo tipo de manual de sobrevivência, manual pra fazer armas, construir bombas caseiras, entre outras coisas do tipo. Aquele pessoal acreditava mesmo que em 2012 o mundo viraria um caos, e a seita até tentou atrair alguns dos participantes do fórum para o grupo. A ideia mais ambiciosa de algumas dessas pessoas era construir um bunker.

Pesquisamos empresas que fabricam bunkers e descobrimos que havia uma ativa no Brasil, aproveitando que algumas pessoas ricas estavam mesmo interessadas em possuir bunkers em seus quintais. Não tínhamos tanto dinheiro assim, mas insistimos na ideia de nos mudarmos para um sítio onde poderíamos construir nosso próprio abrigo subterrâneo.

O ano de 2012 passou, o governo do Anti-Cristo não aconteceu, e em 2013 participamos das grandes manifestações. Apesar da paranoia com o apocalipse ter diminuído — nunca desaparecido — não deixamos de cogitar a posse de armas e imaginar ataques terroristas, dessa vez com motivações mais de acordo com o contexto político do país.

No ano seguinte eu deixei a seita e não tive mais nenhum contato. Ainda hoje penso no tipo de tragédia poderia ter acontecido desde os primeiros anos. Quando leio sobre o decreto que flexibiliza a posse de armas, só consigo pensar que ninguém na seita tinha uma arma quando um dos membros quis se matar. Ou quando houve brigas e divisões dentro do grupo.

Principalmente, fico aliviada por não termos repetido a tragédia de seitas armamentistas que terminaram em mortes, massacres, suicídios em massa e atos de vingança.

Alguns exemplos são bem famosos:

No noroeste da Guiana, o Templo do Povo, também conhecido como “Jonestown”, protagonizou o maior caso de “suicídio coletivo” da história moderna. Cerca de 920 pessoas morreram em 18 de novembro de 1978, na comunidade da seita. O caso ocorreu logo após o assassinato de cinco pessoas por membros da seita, incluindo o congressista Leo Ryan, que visitou a comunidade e recebeu denúncias de abusos e má qualidade de vida. Quatro outros membros do Templo morreram em Georgetown por ordens de Jones.

Os rajneeshees, seita dos seguidores de Osho, foi responsável por um ataque nos EUA em 1984. Eles estabeleceram a denominada “Força da Paz”, que consistia em membros patrulhando o rancho onde habitavam, com metralhadoras Uzi e dirigindo jipes com armas de calibre 30. Os habitantes norte-americanos do Oregon não gostaram dos novos vizinhos e também pegaram em armas. O resultado foi o o maior ataque bioterrorista nos EUA, realizado por membros da seita.

Em 1993, a seita conhecida como “Ramo Davidiano” sofreu um cerco pelo governo dos Estados Unidos, devido a um mandado de busca na sede do grupo, no Texas, após denúncias de posse de armas ilegais. Um tiroteio resultou na morte de quatro agentes e seis seguidores do líder, David Koresh. O cerco seguiu por 51 dias, e terminou com um incêndio que destruiu o conjunto, vitimando setenta e seis pessoas, incluindo 20 crianças, duas grávidas e o próprio Koresh.

“Rancho Apocalipse”, Texas, após cerco e incêndio que deixou 76 mortos

Em 1969, Charles Manson ordenou que os integrantes de sua seita cometessem uma série de assassinatos em Los Angeles, sendo o mais famoso deles o Caso Tate-LaBianca que vitimou a atriz Sharon Tate.

Também não faltam casos de seitas que assassinaram membros que decidiram abandonar o grupo. Felizmente, meus ex-colegas nunca foram atrás dos que foram embora daquela comunidade. Mas o líder costumava dizer que um dia poderia ser necessário que algum de nós assassinasse um ex-colega que estivesse atrapalhando demais os planos.

Há muitas seitas em atividade no Brasil. Embora nenhuma delas tenha protagonizado uma tragédia como as mencionadas acima, talvez — talvez — a dificuldade de possuir uma arma tenha sido um dos principais motivos. Só resta torcer para que, após o decreto do presidente, nosso país não comece a se tornar um celeiro de grupos armamentistas formados por pessoas que acreditam serem “mártires” a serviço de Deus.

*Baseado em minha vivência em uma seita
**Nome fictício

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Daniele Cavalcante
Revista Subjetiva

Redatora de ciência e tecnologia no Canaltech, redatora freelancer e ghostwriter.