Senhores

Pedro Karam
Revista Subjetiva
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4 min readJul 1, 2021
Divulgação

O Senhor da Guerra e o Senhor da Paz combinaram de se encontrar em um barzinho para resolver algumas pendências do passado. O objetivo maior do descontraído programinha noturno era ver se conseguiam entrar em acordo pela primeira vez em suas vidas. Aquela velha batalha ideológica entre os dois estava ficando cansativa demais, e já que com a velhice vem a vontade de sossegar o facho, nada melhor que um ambiente relaxado — onde se pode beber à vontade — para servir de calmante a um possível caso de destemperamento da parte mais agressiva…
Pediram uma rodada de cerveja:
- Estou felicíssimo por estar aqui, hoje. — disse o Senhor da Paz.
- Eu não. Mas vou tentar fingir o máximo possível. — retrucou, rabugento, o Senhor da Guerra.
- Permita-me dizer que o senhor já começou fingindo muito mal
- Você por acaso está querendo brigar?!
- Não, de jeito nenhum! Muito pelo contrário. Pensei que devesse trazer um pouco de sensatez para este diálogo, caso contrário jamais sairemos da estaca zero.
- Estaca? Estaca pontuda? Estaca punji? Onde? — e olhou para o piso do barzinho com a esperança de encontrar algum bambu espetado verticalmente que representasse alta periculosidade para qualquer infeliz pezinho que ousasse passar por aquele chão.
- Ih, pelo jeito não mudou nada mesmo, né? Ainda pensando nessas armadilhas, nessas estratégias de combate… Não sei como você aguenta tudo isso. É muita paranoia pra uma cabeça só.
- E você, mudou alguma coisa? Sempre com essa história de papo, de sensatez, como se isso fizesse alguma diferença no mundo. O meu jeito de encarar as coisas sempre foi mais produtivo.
- Diga o que quiser, mas hoje você está seguindo a minha lógica, tanto que até agora não partiu pra cima de ninguém e está se mostrando um belo de um conversador…
- Só não fiz isso porque estou um pouco cansado.
- Cansado de quê?
- Passei a tarde inteira reformando o meu bunker na garagem. Sabe como é… esta iminência de Terceira Guerra Mundial está me matando de ansiedade. Enquanto o combate não chega, preciso trabalhar firme nos preparativos.
- Você fala em “preparativos” como se estivesse falando de um casamento. Isso me deixa doente…
- A doença é supervalorizada. A Guerra é muito mais objetiva e eficiente. Se quiser, posso lhe mostrar as estatísticas.
- Não quero ver estatística nenhuma. Este papo de guerra está começando a me deixar com raiva.
- Ué, mas quem é da paz não deveria ficar com raiva, ou estou enganado? Aquele tal de Gandhi, por exemplo: fez greve de fome e permaneceu zen até o fim da vida! Você deveria seguir o exemplo!
- Estou me sentindo muito estranho agora. Acabo de receber lições de autoajuda do Senhor da Guerra, confere?
- Pra que tanto ódio em seu coração, Senhor da Paz?
- Eu não vou entrar nesse teu jogo.
- Já entrou. Agora é tarde demais. A minha vantagem é que eu sou estrategista. Preparei o campo minado antes de você entrar. Sempre soube que você não tinha estratégias bem definidas e isso conta muito a meu favor. Essa galera da paz é desorganizada, pensa que vai conseguir dominar o mundo com ideais de ursinho de pelúcia. O negócio é matar geral e começar tudo de novo.
- Você está querendo me converter para o “lado negro da força”, mas isso não vai acontecer. Sou um soldado do bem!
- Estou apenas querendo lhe convencer de que existe um “lado negro” em cada um de nós. E você mesmo acabou de admitir que estava com raiva.
- Mas era uma raiva passageira. Já estou de bem com a vida de novo.
- E olha que quem disse que iria fingir era eu…
O Senhor da Paz engoliu em seco e, para manter a pose de pacifista incorrigível, se levantou para ir embora. Mas, no ato de levantar-se sentiu um “crac” na coluna, o que o obrigou a sentar-se novamente. Olhou para o Senhor da Guerra, sem graça, e disse, nostálgico:
- Ah, que saudade que eu tenho de quando eu era o Jovem da Paz!
O Senhor da Guerra, para não perder a oportunidade, emendou:
- Ah, que saudade que eu tenho de quando eu era o Jovem da Guerra!
Finalmente: eles haviam entrado em acordo pela primeira vez em suas vidas.

Depois dessa, se sentiram na obrigação moral de pedir mais uma rodada de cerveja.

Texto publicado originalmente no livro “Célebres Ninguém” (Ed. Multifoco, 2015), de Karam.

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Pedro Karam
Revista Subjetiva

Escritor, poeta, roteirista de Cinema e TV, cantor e compositor carioca nascido em 1992. Também escrevo críticas de cinema. 4 livros publicados (até agora).