Sintomas Mórbidos, um livro para decifrar a esfinge das Jornadas de Junho

Sabrina Fernandes mostra como a despolitização nos levou ao flerte com o fascismo

Helton Lucinda Ribeiro
Revista Subjetiva
5 min readFeb 15, 2020

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A esfinge das Jornadas de Junho vem devorando muita gente. Mas, se há alguém capaz de decifrá-la, talvez seja Sabrina Fernandes. Seu livro Sintomas mórbidos: a encruzilhada da esquerda brasileira (2019) é rico em insights para compreender a guinada à extrema-direita que ocorreu após as manifestações iniciadas pela luta contra os aumentos nas passagens em 2013. A palavra chave é despolitização.

A leitura do livro requer algum esforço. Não porque o texto não seja claro, mas porque o aporte teórico é denso, com especial imersão nas obras de Antonio Gramsci, Slavoj Žižek e Walter Benjamin. A obra é resultado de uma tese de doutorado em Sociologia, e a autora enfrenta o problema da fragmentação da esquerda brasileira a partir dos conceitos de pós-política e ultrapolítica.

Para fazer a análise, Fernandes faz um recorte da esquerda e a classifica em moderada — PT, PCdoB, CUT, MST — e radical — PSOL, PCB, PSTU, MTST, dentre outros. Trata-se de organizações que mantêm minimamente uma perspectiva de classe, ausente em outros partidos ainda associados à esquerda, como o PDT.

A expressão que dá título ao livro, “sintomas mórbidos”, é uma referência a Gramsci e sua célebre ideia de interregno, quando o velho já morreu e o novo ainda não pode nascer. Para Fernandes, a atual crise de representação política no Brasil corresponde, no campo da fragmentada esquerda, a uma crise de práxis, soma dos sintomas mórbidos do nosso interregno.

Dentre os sintomas, destaca-se a melancolia, compreendida aqui numa perspectiva psicanalítica e a partir da obra de Walter Benjamin, para quem a melancolia tem a ver com o fatalismo, “que ele vê como ligado ao abandono dos ideais e à disposição para ceder e negociar” (p. 293), isto é, ceder à ordem burguesa.

Em sua desconcertante erudição, Sintomas Mórbidos explora as múltiplas determinações da crise de práxis. A ideia de melancolia é a que mais me chamou a atenção, por motivos que revelarei mais adiante, mas a pesquisa de Fernandes é muito mais vasta do que isso. Envolve estudo de campo em várias manifestações de rua, além de entrevistas com militantes das organizações da esquerda moderada e da esquerda radical.

Pós-política e ultrapolítica

De posse do material coletado em pesquisa de campo, a autora consegue demonstrar como a despolitização favorece a direita, que consegue mobilizar multidões com discursos antipartido, anticomunista e antipetista. Como afirma Fernandes:

Um povo despolitizado não se sente representado por ninguém, embora a direita seja capaz de canalizar a indignação por trás da falta de representação ao seu próprio favor, desviando essa indignação contra as ideias de esquerda (p. 226).

É por isso que, em 2013, a própria multidão se fragmenta e oferece uma base social à narrativa a favor do impeachment, enquanto a pauta progressista perde força e a esquerda se divide entre a defesa do governo do PT e a resistência galvanizada no movimento Não vai ter Copa.

Essa despolitização de que fala Fernandes pode ser entendida a partir de dois fenômenos: a pós-política e a ultrapolítica.

A pós-política busca canalizar as demandas populares para as vias institucionais, esvaziando qualquer forma de mobilização e luta social organizada. É o discurso tecnocrata, que reduz a política a uma mera questão gerencial do Estado, que deveria ficar a cargo de especialistas.

Um exemplo: Fernandes não a cita no livro, mas já comentou em seus vídeos do canal Tese Onze, no Youtube, que a deputada Tabata Amaral apresenta um discurso e uma prática típicos da pós-política. Tenta fazer crer que a dicotomia esquerda-direita não faz mais sentido, que a atual polarização precisa ser superada.

Já a ultrapolítica é a própria ascensão fascista, a gana de exterminar o outro, visto como inimigo. A direita radical tem atuado dessa maneira ao criminalizar a esquerda e defender prisão e até mesmo tortura e assassinato de esquerdistas. Não é exagero. Bolsonaro, em seu discurso de vitória após as eleições de 2018, disse que mandaria os petistas para a Ponta da Praia, referência a um centro de tortura e execução da época da ditadura. O discurso de ódio é ultrapolítico.

Pós-política e ultrapolítica na esquerda

Mas mesmo a esquerda flerta com a pós-política e, eventualmente, com a ultrapolítica. Ao nivelar por baixo suas demandas, buscando oferecer à sociedade um programa palatável, que não assuste a classe média, a esquerda contribui para despolitizar. O ângulo ultrapolítico, por sua vez, é exemplificado pelo ataque que setores da esquerda radical fazem ao PT como se este fosse um partido de direita e não uma esquerda moderada marcada por contradições.

Para mim, o livro faz muito sentido. Militei em uma organização da esquerda radical que dirige um sindicato de servidores públicos. Hoje, percebo claramente como nos deixávamos levar pela ultrapolítica no diálogo com a base, atraindo pessoas que desejavam destruir o PT e a CUT. Muitos dos que estiveram conosco nas greves e manifestações contra Lula e Dilma depois vestiram a camisa da CBF, bateram panela e votaram em Bolsonaro.

Acabei por me afastar da militância (e não me orgulho disso) em razão do desconforto com uma situação que é analisada de forma clara e competente por Fernandes, como resume o seguinte parágrafo:

Quando se gasta mais energia e tempo lutando para ser a “vanguarda da vanguarda” do que para interpelar multidões distantes de si mesmas na classe trabalhadora, a esquerda radical se torna refém de suas próprias contradições — e acaba enfraquecendo esforços reais de politização, ligados à construção de bases e à ação orgânica na classe trabalhadora (p. 341).

Não quero, com isso, justificar minha própria inação. A mensagem do livro não é essa. Ao contrário, é uma defesa da utopia, no sentido revolucionário, e da importância do trabalho de base para superar a despolitização. Apenas dou meu testemunho de como a melancolia nos afeta também no nível pessoal.

O momento atual é grave. Segundo Fernandes, vivemos um processo de desdemocratização. E boa parte da esquerda, especialmente a moderada, adota uma posição defensiva, como se resgatar a democracia liberal fosse suficiente. Vendo-se distante de seus objetivos estratégicos, a esquerda se deixa abater pela melancolia, fruto do sentimento de que esse objetivos teriam se tornado irrealizáveis.

A unidade da esquerda — consigna presente na maioria das teses em congressos dos partidos, sindicatos e movimentos sociais — tende a ser um objetivo irrealizável sem a politização. Por isso, Sintomas Mórbidos é um livro necessário e espero que seja amplamente debatido. Ou a esfinge nos devorará a todos.

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