Sobre a esperança e o medo

Cecilia Santos
Revista Subjetiva
Published in
3 min readJan 16, 2020

Quando eu soube do mandado de prisão para o ex-presidente Lula, eu acho que o que senti nem foi mais tristeza. Tampouco surpresa ou mesmo indignação. Não sei se isso é bom ou ruim, também. Eu despedacei mesmo quando vi tudo o que aconteceu com a Dilma. A desfaçatez, a vilania. Com o Supremo, com tudo. Foi meio que o começo do fim ali. Aquele sentimento de um tecido que parecia tão bem fiado sendo completamente esgarçado. Onde depois, tudo era rompimento.

Sempre esteve claro que o plano em curso — sim porque é bastante óbvio que há uma estratégia muito bem definida em curso para reordenar as peças no tabuleiro do poder do País — é sobretudo um ataque simbólico a tudo que representou e representa um partido e um governo com pretensões populares: a possibilidade de pessoas pobres terem esperança. E sonhar.

Eu sei que isso não vai fazer sentido para muita gente, mas quem tem origem pobre sabe bem como esperança é um luxo que não se permite. Os dias existem para garantir a sobrevivência aos dias seguintes. E arrasta-se pela vida, do subemprego para casa, da casa para o subemprego. Recebendo uma educação suficiente apenas para garantir um entendimento mínimo das tarefas laborais. Reproduzindo mais mão-de-obra para manter a roda girando. Sendo mantido sempre distraído, sempre entretido, por algum programa programado para reprogramar mentes ao seu bel prazer. Sem tempo para pensar. Sem tempo para lutar. Sem esperanças de sonhar. Porque nasce aprendendo que existe um mundo que “não é para ele”.

Eu lembro da campanha da primeira eleição do Lula. Eu chorei quando ele ganhou. Porque foi tão bonito ver um proletário usando aquela faixa. Tão significativo. Só quem já comeu o sal da terra pode realmente entender o que é ver um dos seus chegando a lugares que nunca se ousou desejar, como a presidência da República. Se ele chegou… Por que não? Lula, naquele momento, se não era a encarnação da esperança, nada mais seria. E a esperança tinha vencido o medo.

O medo, esse inquilino perpétuo da pobreza. Medo de ficar doente e não ter atendimento, medo de não conseguir emprego, medo de perder o emprego que conseguiu, medo de não conseguir vaga na escola, medo de tomar um tiro, medo de passar fome. Medo. Medo. Medo.

Mas, sabe, eu entendo que muitos não alcancem. Para os que vociferam, o medo é uma entidade absolutamente abstrata plasmada em monstros imaginados e caricatos. Pode mesmo o medo do “comunismo” competir com o medo de não ter o que dar de comer aos filhos?

E eu entendo também que essas pessoas pobres assistam impávidas a tudo que está acontecendo. Com que coragem se pede a um trabalhador para arriscar seu único subemprego que sustenta miseravelmente sua família para “lutar” por esse país que sempre lhe virou as costas? Que apenas lhe mostrou sobre a dor? Que faz chacota e solapa as parcas conquistas que lhe foram concedidas?

Que ironia que o maior trunfo de Lula seja também o seu calcanhar de Aquiles. Ele é o herói de um povo que se afoga. Um povo que toda energia que resta está empregada para manter a cabeça para fora da água. Um herói que surgiu triunfante num barco cheio de botes e que agora está naufragando. E um afogado não salva o outro.

O sangue do povo na água. Ao longe, os tubarões.

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Cecilia Santos
Revista Subjetiva

degustadora de palavras. com mel. com cachaça. com pimenta.