Sobre a pressão do propósito

Yasmin Narcizo
Revista Subjetiva
Published in
3 min readJan 22, 2020

E um discurso de futuro que parece ignorar a beleza do presente.

Photo by Max van den Oetelaar on Unsplash

Na virada de 2019 para 2020, assim como acontece todo ano, choveu gente falando sobre metas e dando listas detalhadas de tudo que elas queriam construir para a nova década que estava chegando. E, associado a isso, não era incomum que surgisse também o tal do propósito: uma motivação maior, que rege a sua vida e deve ser o motor de tudo o que você faz em todos os próximos anos.

Particularmente, eu tenho 0 problemas com metas. Inclusive, faço listas e mais listas diárias com tudo o que preciso cumprir, planejo detalhadamente os meses na minha agenda e já sei as viagens que eu quero fazer antes mesmo do ano virar. É uma forma que eu encontro de lidar com a ansiedade do inesperado e do incerto.

Com o propósito, porém, não consigo fazer as pazes. Ele me incomoda porque me soa esnobe, pedante. É como se você tivesse a obrigação de saber exatamente o que te move e focasse todas as suas ações em perseguir apenas isto — caso contrário, está condenado a viver uma vida rasa e mal vivida.

Se ouve de tudo: propósito de ensinar as pessoas a viajar o mundo, a serem mais felizes com seus corpos, a serem grandes empreendedores aos 30 anos de idade, a serem financeiramente independentes (para o resto da vida) aos 40 e por aí vai. De fato, são objetivos grandiosos. Espero de verdade que quem sonhou cada um deles consiga cumprir.

Mas me incomoda que isso tenha se tornado apenas mais uma pressão, uma obrigatoriedade. Não basta ser um bom profissional, você precisa se tornar um executivo C-level. Não basta ter uma empresa que te provê o sustento, ela precisa ser tão lucrativa que se torne um império. Não basta compartilhar o seu conhecimento específico com amigos e familiares, isso precisa se tornar um curso tão completo e imperdível que ganhe uma página de vendas na Hotmart.

Como se não fosse pressão social, estética e financeira o suficiente, agora temos mais uma para carregar: atingir um autoconhecimento tão elevado que você descubra a sua missão para a vida. E, uma vez estabelecida essa missão, os bens que você compra, o conteúdo que você consome, a sua força de trabalho e cada gota de suor que você transpira tem que ser voltada para atingir esse objetivo.

Isso, é claro, se você não quer viver uma vida tão pequena e vazia que chegue a ser quase… insuficiente.

Como se fosse pequeno se levantar aos sábados para passar um café quentinho e sentar no sofá da casa que você trabalha o mês inteiro para sustentar. Como se fosse pequeno chegar de uma jornada de 8h de trabalho com 2h de deslocamento e relaxar fazendo um carinho em quem se ama. Como se fosse pequeno pagar todos os meses os boletos, sabendo que está oferecendo pra sua filha a melhor educação que o seu esforço pode pagar. Como se fosse pequeno apreciar o que são, de fato, as pequenas felicidades da vida.

Para mim, o discurso do propósito não convence: prefiro passar uma vida inteira me contentando com as miudezas do que me esforçando além da conta em busca de uma grandiosidade que só vai fazer eu me sentir insuficiente.

É claro que todo mundo quer ter conquistas na vida, se sentir útil, produtivo, sentir que é bom no que faz e que está caminhando para o sucesso (ainda que o que é sucesso seja relativo para cada um). É claro que seria lindo se todo mundo pudesse trabalhar com o que ama e se sentir totalmente realizado com isso. Mas, ao mesmo tempo, é perigoso passar os dias mirando só láááá na frente porque o que acontece no agora pode acabar passando em branco, diante dos seus olhos.

Pra mim, o propósito dos dias é viver o fim de semana com calma, é celebrar o privilégio de ter comida à mesa, é fazer da nossa casa um lar, é celebrar quem me faz companhia, é apreciar a rotina, é pagar as contas em dia, é juntar dinheiro pra viajar com a família, é viver uma vida tranquila, com tudo o que faz dela pequena, mas plena. A vida farta e bem vivida que eu sempre quis.

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Yasmin Narcizo
Revista Subjetiva

Jornalista por formação, publicitária na raça e autora do “Não tô sabendo lidar”, à venda na Amazon. Observa o mundo com olhos de quem não entende nada mesmo.