Sobre bloqueio criativo (em pleno COVID-19).

André Arrais
Revista Subjetiva
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3 min readApr 18, 2020
Divulgação: Saturno devorando um filho, Francisco de Goya (1819–1923).

Por definição sofro de bloqueio criativo desde que me conheço por gente. Simples e direto assim, sem rodeios ou grandes dilemas. Ter um texto pronto é menos um trabalho criativo e se assemelha mais a um trabalho de parto onde o bebê não quer sair logo, preciso empurrar ele para fora de mim de alguma forma com todas as forças — que não tenho — para que este veja ao mundo como puder. Geralmente vem incompleto, com isso só noto seus defeitos depois que está fora do meu alcance.

Logo esse mesmo começo já é um desafio em si e um parto sendo realizado.

Mas não estou realizando esse trabalho em condições normais, tampouco fui agraciado pela ideia correta de um ensaio que soou interessante suficiente que me fizesse colocar-me nessa situação traumática de dor, desespero e desolação, mas o contrário; não sei sobre o que escrever porque não entendo mais sequer minha função no planeta COVID 19, país Cloroquinazil.

Sobre o que supostamente devo fazer e qual meu papel dentro da sociedade quarentenada? Sobre o que devo escrever? Qual a mensagem que devo estar jogando para frente?

Com tanto barulho e tanta ansiedade, sobre o que supostamente devo estar falando? Qual minha contribuição?

A normalidade morreu, dizer isso a esta altura é repetir o óbvio e é a nova realidade, mas tampouco é possível se traduzir em palavras o sentimento que se tem sob essa monstruosidade que se concretizou na figura de um vírus. Ainda que é possível ver todas as fraturas óbvias de uma sociedade que permaneceu esquizofrênica por muito tempo finalmente percebendo suas contradições e suas repressões, não somos capazes de traduzir isso em mudanças.

Há muito permaneci fascinado com o conceito do horror existencial, de defrontar algo tão profundamente obscuro que a mente sã não seria capaz de conciliar tal coisa. Cá estou, olhando a besta em forma de doença ruminando o futuro para além dele confinado entre minhas quatro paredes, me perguntando o que será de nós. O ser não-cósmico de Wuhan se ergueu e todos nós estamos procurando onde nos agarrar. Na nossa humanidade? Nos valores que estão por morrer? Ou nos sacrifícios dos corpos dos pobres para o deus invisível que chamamos mercado?

O mercado, O mercado, poderia nos poupar por mais um ano?

Entre o presidente genocida, a distância de qualquer calor humano e a insegurança do futuro que sabemos que nunca mais será o mesmo, qual é minha função e sobre o que supostamente devo escrever?

Nunca antes em tempos contemporâneos houve tanto barulho e ao mesmo tempo, tanto silêncio. Contradições expostas, escancaradas, nuas e cruas, em praças vazias, congressos ociosos e mercados fechados, ações declinando, empregos esvaziando, dinheiro indo e dinheiro voltando, narrativas tentando serem estabelecidas e sendo contadas, recontadas, remanejadas e restabelecidas enquanto o cavalo branco avança sobre todos nós com devido cavaleiro, com arcos em mãos, trazendo consigo seus irmãos.

O ano de 2020 recém tinha começado e já demonstra que se encerrou tão cedo, ainda assim estamos todos agarrados aos nossos móveis, nervosos afogados nos nossos homeoffices em uma demonstração pífia de produtividade ao único e real deus da mão invisível que uma parte expressiva de nós escolhemos apertar, não suficiente só agora estamos percebendo a troca que estávamos fazendo e que ainda estamos fazendo. Por favor, por favor, que mais esse abate no altar seja o suficiente para que não me permita sair no mundo exterior, poupe os fracos e os miseráveis, pois se eles forem, o próximo da fila serei eu e meus iguais, Moloch.

O quanto de nós já não foi consumido, rasgado e dilacerado para satisfazer tamanha besta abissal faminta e antropofágica que habita no coração das bolsas de valores vazias, no espaço metafísico intangível, cujos tentáculos estendem até as raízes? Tão cão em estado avançado em hidrofobia há muito já havia que ter sido abatido, tal cancro removido e extirpado. Ainda assim, infecta e nos matara todos.

E agora que não há mais engrenagens, somente o dinheiro que se multiplica em si e nada mais se está atrelado, como se interrompe a máquina? Como as mãos se conectam ao coração?

Como se sobrevive um ser tão cósmico e ao mesmo tempo, tão distintamente e obscenamente humano?

O que será de mim até o fim da gestação? Ainda vou ser um escritor até o final dessa abominação?

Isso sequer é um artigo?

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André Arrais
Revista Subjetiva

Graduado em Direito, escritor e invariavelmente cansado.