Sobre fuzileiros e idiotas

Carlos Barth
Revista Subjetiva
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3 min readFeb 13, 2020
Cena do filme “Nascido para matar” (1987) de Stanley Kubrick

Quando ingressei no Corpo de Fuzileiros Navais, em 1998, havia em meu pelotão um cara enorme, do tamanho de um armário. Parecia o Rambo. Alto, forte, falastrão, destacava-se dos demais. Do alto de meus pouco mais de metro e sessenta e cinquenta quilos, parecia-me que aquele recruta era a personificação do que se esperaria de um fuzileiro naval. Não poderia estar mais enganado.

O troglodita impressionou bem a nós, recrutas. Entretanto, os instrutores tinham o olho treinado para distinguir uma fraude. Caíram encima dele como abutres na carniça e o bombadão não aguentou nem dois dias de terror psicológico até acabar em um pranto desconsolado na frente de todos como uma criança desamparada. Pediu pra sair. Que decepção! Quebrou fácil.

Outros deram mais trabalho, inclusive o cara que não aguentou o tranco mas também não suportava a vida miserável que levava lá fora e tentou o suicídio ingerindo um frasco de polidor de metais. Menos mal que foi na primeira semana. Imaginem se um cara desses já tivesse tido acesso à um fuzil!? Não teria como resolver com lavagem estomacal.

O restante de nós, em geral, era o oposto do troglodita chorão que havia me impressionado. Éramos esquisitos, tortos, feios, desajustados. Estávamos totalmente fora do perfil que se esperaria de um fuzileiro da Marinha do Brasil. Uns gordos demais, a maioria magros demais. Passávamos longe do estereótipo do fuzileiro americano dos filmes. Havia um recruta em particular, o Cosme, que chegava a me inspirar pena. Olhava pra ele e não via um fuzileiro de jeito nenhum. Magro, esquálido, insípido. Me parecia que aquele cara era absolutamente inadequado para o serviço da pátria. Eu era um idiota por pensar assim, mas quem não o é aos 18 anos?

Alguns estavam lá por idealismo, a maioria por necessidade. Éramos pobres e a Marinha era uma tábua de salvação. Não existe maior motivação do que uma barriga vazia. Deviam avisar isso aos coachs.

Naquelas 13 semanas infernais do recrutamento houveram muitos momentos difíceis, mas um em especial tenho vívido na memória pois me serviu como uma grande lição. Era o término do primeiro período de treinos no campo, hora de regressar ao quartel, mas chovia e a estrada estava intransitável e por isso tivemos que correr alguns quilômetros até o ponto onde o ônibus conseguia chegar. Isso depois de vários dias praticamente sem dormir, treinando dia e noite.

Correndo de mochila e fuzil, exaustos, alguns recrutas eram amparados pelos colegas. Correndo a meu lado, lembro quando o Jorge apagou antes que eu conseguisse segurá-lo. Ele caiu em uma vala ao lado da estrada e prontamente foi “estimulado” a levantar por dois instrutores. Olhava aterrorizado enquanto os instrutores, aos gritos, chutavam o corpo do recruta desacordado. A primeira grande lição do dia foi ver nosso médico, Tenente Webber, um rapaz educado, pacato, defendendo o recruta caído como um leão defenderia sua cria.

Continuamos a corrida e não muito tempo depois senti a vista turva, perdi o controle das pernas e quando ia cair senti alguém segurar meu braço com firmeza. Era Cosme, aquele que me inspirava pena. Me amparou, me ajudou. Quando tudo ficou preto e ia desmaiar, Cosme rasgou um sachê de mel e me fez beber para recobrar a consciência. Cosme, o cara que me parecia inadequado para o serviço da pátria. Naquele dia aprendi uma lição que nunca mais esqueceria. Aprendi que aparências não querem dizer absolutamente nada e que é só na hora do sufoco que as pessoas mostram quem realmente são. Aprendi, também, que às vezes quando você vai cair a ajuda vem de quem você menos espera. As pessoas podem falar o que quiserem, mas quando a situação aperta é que vemos quem é homem de verdade. Cosme era homem, era uma fortaleza. Cosme era um fuzileiro de verdade. Já eu, era um idiota.

Cena do filme “Nascido para matar” (1987) de Stanley Kubrick

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Carlos Barth
Revista Subjetiva

Aspirante a escritor, karateca dedicado e budista relapso.