Sobre História do novo sobrenome (Elena Ferrante)

Maíra Ferreira
Revista Subjetiva
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4 min readAug 23, 2021

Não sei nem como começar a escrever sobre Elena Ferrante. A minha intenção, na verdade, era escrever sobre a tetralogia só quando terminasse a leitura de todos os livros, mas não consegui resistir depois de ler História do novo sobrenome. Se A amiga genial já tinha sido um mergulho, esse segundo romance da série foi como ser tragada, engolida pelo universo de Ferrante, pelas relações complexas entre os personagens do bairro e os entrelaçamentos de suas vidas — e, é claro, mais especificamente, pela amizade conturbada de Lila e Lenu.

O relacionamento entre as duas, desde a infância, já era marcado por uma mistura contraditória de rivalidade e identificação. Lenu, que narra toda a história sob seu ponto de vista, parece nutrir por Lila uma gama de sentimentos tão variada que vai da devoção completa ao eventual desprezo, passando pela dependência, necessidade de aprovação e até mesmo pela sensação de que apenas as duas são capazes de compreender uma à outra, que ambas compartilham uma verdade à qual somente elas têm acesso. Ou que, em outras situações, aparenta ser de acesso restrito à Lila, deixando Lenu angustiada diante da possibilidade de não poder participar.

Boa parte da relação delas, aliás, é construída sobre essa espécie de acesso a algo de exclusivo na vida — um acesso que ora está nas mãos de Lila, ora nas mãos de Lenu, e em certos momentos é compartilhado entre elas, mas em outros tantos é usado como arma. Para Lila, esse acesso passa primeiro pelo crescimento financeiro a partir do casamento e depois pela realização amorosa — ambas vivências que não são contempladas por Lenu, que encontra o próprio diferencial nos estudos e na construção de uma carreira. Ao longo da história, é interessante acompanhar como as duas alternam entre a proximidade e o distanciamento, a competição velada e o apoio mútuo. Como se, ao mesmo tempo em que se repelem e se agridem, Lila e Lenu também nutrissem um vínculo que não têm com mais ninguém, um vínculo inquebrável. A própria Lenu chega a dizer em um momento de raiva: “Me senti acorrentada a um pacto insuportável de amizade”.

Insuportável porque Lenu, mesmo quando faz movimentos para se afastar do bairro e da amiga, mesmo quando busca sua própria trajetória, parece ser incapaz de sustentar sua vida sem constantemente compará-la à de Lila (tanto para se sentir superior quanto para se afundar na angústia de se perceber sempre insuficiente, sempre aquém, sempre atrasada nessa corrida entre as duas). Após ver Lila pela última vez, Lenu escreve: “Sua vida me esmagou, demorei dias para restituir contornos nítidos e espessura à minha”. Não importa o que Lila faça, há algo nela que parece transcender os acontecimentos, algo que diz respeito à própria forma verdadeira como ela atravessa a vida — seja na mansão de Stefano ou no trabalho exaustivo em uma fábrica que chega a deixá-la com os dedos machucados. É essa verdade que Lenu parece estar em busca, mesmo quando não admite, ou quando, diante de Lila, adota uma postura esnobe, quase como aquela criança que não consegue o que quer e sente a necessidade de dizer “mas eu nem queria mesmo”.

São sentimentos complexos e esses dias me chamou a atenção ver um comentário na internet apontando Lenu como “mesquinha”. Não acho que seja. No fim das contas, tanto Lenu quanto Lila são jovens que cresceram em um bairro difícil, árido em afetos e referências, até mesmo agressivo, e ainda estão tentando entender como navegar pelo mundo (e, diga-se de passagem, um mundo bastante misógino, em que elas já são, de antemão, empurradas para certos papeis, como se desde a infância já houvesse um roteiro a seguir). De certa forma, as duas — cada uma à sua própria maneira — estão tentando escapar de uma vida pequena demais para elas, uma vida que as engole. Entre apaixonamentos e brigas, leituras e debates, entre o deslumbramento adolescente e a vida real dos apartamentos sujos que o escasso dinheiro é capaz de bancar, atravessando o bairro e indo além, Lila e Lenu se apoiam no vínculo complexo que têm entre si porque é o que elas conseguem encontrar de mais sólido. Um pequeno território de compreensão em meio a um deserto de isolamento.

Ainda não posso falar sobre os dois últimos livros da tetralogia, mas, dos dois primeiros, o que fica é a surpresa diante de como Ferrante consegue engolir o leitor em sua narrativa. Mergulhando em toda a contradição presente nas relações humanas, em toda a fragilidade e potência de suas personagens, nós não conseguimos sair dali até ler a última palavra da última linha. Uma leitura avassaladora.

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Maíra Ferreira
Revista Subjetiva

Minha Carrie Bradshaw interior não resiste a uma divagação. Escrevo prosa, poesia e textões sobre o caos da vida. http://instagram.com/mairacomacento