Sobre Missa da meia-noite, moralidade, culpa e religião

Maíra Ferreira
Revista Subjetiva
Published in
4 min readSep 28, 2021
Foto: Netflix

Eu sempre achei fascinante como, ao longo da História, houve tantas pessoas cometendo crimes tenebrosos sob a justificativa de estar a serviço de uma força maior. Um Deus poderoso que promete que os fins justificam os meios — ou que, depois da barbárie, vai vir alguma espécie de salvação, ressurreição, purificação, o que quer que seja. Qualquer moralidade anterior parece facilmente dobrável sob o peso dos discursos religiosos. Tudo se justifica. E os que cometem as atrocidades são muitas vezes pessoas tomadas por um senso de propósito extremamente forte. Eles se sentem escolhidos, engrandecidos pela incumbência da tarefa, se sentem convictos de que estão fazendo a coisa certa, se o que está sendo feito é um pedido de seu respectivo Deus. Parece não existir dúvida ou remorso. A convicção religiosa prevalece sobre todo o resto.

Outro aspecto do fanatismo religioso que sempre me intrigou foi a facilidade em adaptar qualquer acontecimento para que ele caiba no discurso que convém. Seja qual acontecimento for, parece sempre existir uma forma de moldá-lo para que ele sirva ao propósito que se deseja. Um pouco como aquela frase da Anaïs Nin que diz que nós não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos. Se você está muito disposto a acreditar no que quer que seja, é bem fácil deturpar todos os acontecimentos para que eles caibam dentro da sua crença — e sirvam para endossá-la.

Tudo isso aparece com força em Missa da meia-noite (Midnight Mass), nova série do Mike Flanagan (criador de The Haunting of Hill House e The Haunting of Bly Manor). A minissérie de terror aborda a chegada de um jovem padre (Hamish Linklater) a uma ilha com pouquíssimos moradores, praticamente moribunda e desesperada pela renovação da própria fé. Essa chegada, no entanto, vem acompanhada de alguns milagres e mistérios, que aos poucos vão envolvendo todos os moradores, fazendo com que eles mesmos revejam suas relações com a religião e a moralidade.

Uma dessas pessoas é Riley (Zach Gilford), que morava na ilha quando mais jovem. Alcoólatra, ele acaba sendo preso após atropelar e matar uma menina. Ao sair da prisão, retorna à ilha, reencontrando a família e a amiga de infância, Erin Greene (Kate Siegel). Riley é um dos personagens centrais da narrativa, se considera ateu e questiona os preceitos religiosos que parecem mover todos na região — todos, exceto o xerife Hassan (Rahul Kohli), muçulmano que constantemente enfrenta o preconceito da comunidade. Riley é ainda um personagem movido pela culpa. Assim como Joe Collie (Robert Longstreet) — um morador da ilha que também sofre com o alcoolismo e com o remorso de ter causado um acidente que deixou uma adolescente paraplégica. A presença do vício, aliás, parece servir ao propósito de trazer à tona um dos sentimentos-chave que atravessa, de uma forma ou de outra, todos os personagens: a culpa.

Em um de seus discursos, o padre chega a dizer que novos tempos exigem novos códigos de moralidade. Entortando a ética para caber onde se deseja, os religiosos da série se mostram capazes de muitas atrocidades — e até mesmo de muitas ingenuidades, chegando a acreditar que uma criatura que de angelical não tem nada poderia ser de fato um anjo. Todos os acontecimentos, enfim, se moldam para caber no discurso religioso sustentado por eles — e ai de quem ousar contrariar. Os que discordam são automaticamente transformados em inimigos, hereges, pecadores, e precisam, é claro, ser punidos.

É interessante, aliás, como esse fanatismo religioso se manifesta também de diferentes formas em alguns personagens: enquanto o padre Paul parece desesperado por acreditar (e seu desespero parece vir de um lugar de arrependimento e culpa por acontecimentos do passado), Bev Keane (Samantha Sloyan) já usa a religião para camuflar a própria crueldade e desejo de punição. É irônico, inclusive, vê-la chamando Hassan de terrorista em um dos episódios, enquanto os devotos fervorosos de sua igreja cometem as maiores barbáries possíveis sob a justificativa de estarem servindo a Deus.

Missa da meia-noite tem só 7 episódios e, ainda que comece lenta, parece subir em um crescendo de tensão, desembocando no mais completo caos. O conceito da pequena cidade tendo suas hipocrisias expostas e outros elementos me remeteram logo ao Stephen King, e até comentei no Twitter que, se o Mike Flanagan e o King tivessem um bebê, o bebê seria essa série. Apesar da influência clara, também é possível ver alguns dos traços marcantes do Flanagan, como os monólogos questionadores dos personagens e a presença dos mortos assombrando os vivos.

Mesmo adotando um estilo bem diferente das anteriores Hill House e Bly Manor (minha favorita), Missa da meia-noite me ganhou pelos questionamentos sobre moralidade, culpa e religião, além de entregar um terror daqueles que deixam a gente pensando se o que assusta mais são as criaturas sobrenaturais ou o que um ser humano é capaz de fazer.

Foto: Netflix
Foto: Netflix

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Maíra Ferreira
Revista Subjetiva

Minha Carrie Bradshaw interior não resiste a uma divagação. Escrevo prosa, poesia e textões sobre o caos da vida. http://instagram.com/mairacomacento