Sobre o vírus e seus romances

Leonardo Goldberg
Revista Subjetiva
Published in
4 min readMar 26, 2020
A Dança da Morte” (gravura de Hans Holbein)

Algumas figuras públicas — de intelectuais à ídolos pop — têm adotado, diante da pandemia do coronavírus, um tom relativamente romântico sobre o flagelo. Aliás, alguns de peso: de Madonna à Zizek, a ideia da doença como um equalizador e como um acontecimento que demarcará de forma precisa um antes e um depois da humanidade, portanto, que produzirá um corte acontecimental em nossos cotidianos, incorre em algumas predições complicadas no campo da moral. Algumas predições dão conta de um acontecimento que reorganizará nossa lida com o tempo, com o dinheiro, com as relações sociais e, portanto, o próprio neoliberalismo estaria em xeque em um arranjo que, no mínimo, seria equalizador.

Começo por aí. A doença não é equalizadora. Explico-me/implico-me: as camadas mais privilegiadas da sociedade têm acesso, através de planos de saúde caríssimos, a um atendimento completamente diferente daqueles que os que habitam os “andares de baixo” recebem. Essa hierarquia pode ser estendida aos países: seria jocoso comparar a qualidade do atendimento médico na Alemanha com grande parte dos países árabes ou do norte da África, que sequer contam com testes aferidores para produzir estatística e contenção de danos. A doença também mira faixas vulneráveis da população mundial: os idosos, os doentes crônicos, aqueles que possuem problemas respiratórios crônicos. Portanto, ela equaliza em categorias homogêneas apenas aqueles que tem acesso a saúde, condição física excelente e nenhuma doença crônica. Os que saem dessas categorias contam com a sorte e a boa vontade das políticas públicas voltadas às quarentenas.

Apesar dos argumentos românticos recaírem de forma animada para a moral da pandemia enquanto uma oportunidade de introspecção forçada, de “olharmos para nós mesmos”, de praticarmos atividades de refreamento da ansiedade, de reavaliarmos nossa relação espaço-temporal com o cotidiano, ao menos em princípio, se a “peste” é dotada de um certo telos, sua finalidade seria moralmente bem eugênica: eliminar os velhos, os doentes, os “não-atletas”.

O problema dessa “animosidade romântica” — e eu adjetivo romântica justamente porque ela é carregada de certa desconfiança diante do cotidiano técnico como se esse fosse efeito e estrutura do neoliberalismo — é que essa suposta desconstrução de nossos narcisismos e individualismos, essa redução das hierarquias sociais e imaginárias ao pó, se trata, ao menos desde a idade média, de uma retórica moralizante cristã que encontra nas imagens da morte, incluindo aí a peste, sua resignação moral. O famoso conto do livro de salmos de Bonne de Luxemburgo (Sec. XIII) representa bem essa moral: os três mortos avisando os três vivos do fim que os aguarda. A danse macabre, toda iconografia medieval, as saudações que relembram o memento mori, o “relembre-se que és mortal”, demarcam bem uma relação com a ideia de morte que perpassa tanto a moral divina quanto endossam o dever humano de resignação e humildade perante o fim. Mas mais: de relembrar constantemente a finitude como equalização, o momento em que ricos e pobres, reis e súditos, monarcas e criminosos serão finalmente reduzidos e igualmente ao pó. O engodo é que tal retórica vela as estruturas desiguais que permeiam o cotidiano vivo.

Sendo assim, talvez a única ética diante do incontrolável seja a de uma resignação um pouco mais atuante, que fortaleça pactos de solidariedade e de proteção aos mais vulneráveis. Que aposte na epidemiologia e suas respostas técnicas. Essa é a moral camusiana: sem heroísmos pessoais, a honestidade diante do próprio trabalho, a aceitação da contingência que estabelece uma quarentena, um tempo “suspenso” do tempo cotidiano que exige de todos nós certa parada. Aliás, o tempo foi, desde sempre, o grande remédio para as pestes, e aí podemos incluir a peste enquanto metáfora também.

Isso não se trata de pormenorizar as possíveis rupturas que um acontecimento desses pode gerar, nem seus efeitos em um “mundo novo”, que podem ser mais interessantes ou mais cruéis que o anterior. Mas sim de realizar que é impossível e talvez perigoso historicizar um acontecimento antes de seu fim. Claro que nossa primeira reação diante do imponderável é tentar “resolvê-lo”, criando saídas contingenciais, guardando o que for preciso, “estocando” produtos, palavras e papéis-higiênicos para não se sujar com seus “produtos”.

Porém, o que talvez seja importante destacar — e isso sim obriga o interlocutor a se situar, e talvez encontrar uma referência nesse tempo em que é feio adotar referências e sentidos — é que a história humana é uma história de pestes, de pandemias, de acontecimentos mortais e de rupturas. Portanto, não há nada de novo ou “sem precedentes”: estranho seria se não houvessem mais pandemias, se a ilusão do progresso contínuo se concretizasse e pudéssemos apostar tranquilamente que o futuro pertenceria mais à ciência que à religião, mais aos anseios poéticos que aos burocratas, mais às democracias e menos aos odiosos.

O que talvez se trate de uma novidade é o suporte entre as nações, a troca de informações e de tecnologias em velocidade e nível global, nosso lidar com a quarentena através de tablets, computadores, incluindo aí as relações amorosas que não cessam como outrora e as despedidas dos doentes através de vídeo, além do rito fúnebre possível através das redes e suas notas fúnebres/obituários digitais. Isso sim, é “sem precedentes”.

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